A Subordinação na Poesia

Introdução

Este trabalho busca examinar a influência da sociedade na institucionalização da literatura, explorando os motivos que levam a sociedade a agir dessa maneira, e como a poesia desafia esse contrato social. Para alcançar esse objetivo, realizaremos uma análise de três diferentes escolas literárias, abrangendo o classicismo, o barroco e o modernismo.

Resumo

Neste estudo, analisaremos três poemas de três escolas literárias diferentes: "Endecha à Bárbara escrava" de Luís de Camões (poema do período classicista), "Quer seja curto ou comprido" de Manuel Maria du Bocage (poema do período neoclassicista) e "Em Linha Reta" de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa (período modernista) . Observaremos como a poesia, em particular, subverte as normas e modifica as relações entre o leitor e o escritor, desafiando as convenções sociais. Além disso, para fundamentar essa análise foi utilizado o texto "Luís de Camões: ensombramento e descobrimento" de Sophia de Mello Breyner, a fim de fundamentar a subversão na poesia e demonstrar que a poesia não é uma instituição, mas sim uma transgressão.

A Formação do Contrato Social e a Institucionalização da Literatura pela Sociedade

O ser humano, como um ser social, depende da interação com outros para aprender e se desenvolver. No entanto, essa interação social, embora muitas vezes benéfica, estabelece padrões a serem seguidos pelos membros da comunidade. Esses padrões são essenciais para a vida em sociedade, mas também têm o potencial de influenciar e institucionalizar a literatura. Enfim, a literatura, como expressão do pensamento humano, reflete os valores de uma época. Portanto, a sociedade busca ver representado os seus valores nela. No entanto, mesmo autores que desafiam as normas sociais acabam fazendo parte de um contrato, ou aliança, com a sociedade e seus leitores, mas mesmo estes acabam por quebrar essa aliança quando não fazem o que se espera deles. Isso pode ocorrer quando um texto usa a arte do engano.

A Poesia Subvertendo as Regras e Quebrando os Contratos Firmados Com a Sociedade

Na poesia, notamos um movimento contrário à institucionalização. Poetas como Camões, Pessoa e Bocage desafiam essas regras e as transgridem. Isso demonstra que nem toda literatura pode ser institucionalizada, pois a poesia, como exemplificada pelos poemas de Camões e Bocage, pode subverter as normas vigentes na sociedade. Bocage, por exemplo, estabelece uma aliança com a sociedade e seus leitores como um transgressor das regras, mas quebra essa aliança quando escreve poemas que parecem subversivos, mas, na realidade, não o são.

Análise do Poema Camoniano Endecha à Bárbara escrava( indicação do autor, o poema não tem título) e a subversão como quebra das regras vigentes.

Luís de Camões, no poema Endecha à Bárbara escrava , subverte a ordem vigente na sociedade em que vivia .Em uma sociedade europeia lusitana, onde aceitável e correto era o homem se casar com uma mulher branca, loura e europeia ele declara o seu amor a uma escrava. Esse comportamento subverte as leis (pelo menos sociais ) daquela época.

O poeta vai mais longe e afirma que nunca antes viu uma mulher mais formosa do que aquela que o mantém cativo.

Como podemos perceber na estrofe abaixo o poeta afirma que é cativo de uma escrava . Só esse fator já é um modo de subverter o pensamento da época, pois o poema não fala de um amor de um europeu para uma europeia, mas de um europeu para uma não europeia . Além de não ser uma mulher considerada ideal para ele ( considerada pela sociedade) ,ele vai além e diz que entre suas iguais não existe alguém tão bela quanto essa mulher.

Endechas a Bárbara escrava

“ Aquela cativa

Que me tem cativo,

Porque nela vivo

Já não quer que viva.

Eu nunca vi rosa

Em suaves molhos,

Que pera meus olhos

Fosse mais fermosa.” Camões

Além disso, ele subverte o padrão de beleza da época dizendo não existir mulher mais bela que a cativa. O padrão de beleza para a época era a mulher ter olhos claros e cabelos louros, contudo, ele a acha bela mesmo tendo os olhos escuros,rosto singular (diferente daqueles que compunham a sociedade em que vivia) e os cabelos negros. Como podemos ver,nos versos abaixo, a poesia subverte os padrões de beleza.

“Nem no campo flores,

Nem no céu estrelas

Me parecem belas

Como os meu amores

Rosto singular,

Olhos sossegados,

Pretos e cansados,

Mas não de matar.”

“U~a graça viva,

Que neles lhe mora,

Pera ser senhora

De quem é cativa.

Pretos os cabelos,

Onde o povo vão

Perde opinião

Que os louros são belos”. Camões

Enfim, neste poema podemos ver que Camões transgride todas as regras da sociedade quando se apaixona por uma mulher negra que tem os cabelos e olhos escuros, haja visto que o que era institucionalizado era o homem europeu se casar com uma uma branca ,loura e de olhos claros. Mas, no poema não é isso que vemos. A mulher que é objeto da sua paixão não corresponde a esse biotipo. (...) “Pretos os cabelos,/ Onde o povo vão /Perde opinião /Que os louros são belos./ Que a neve lhe jura/ Que trocara a cor.”

Análise Do Poema Neoclassicista Quer seja curto ou comprido ;Bocage. A quebra da aliança entre autor e leitor e a subversão

No poema barroco “ Quer seja curto ou comprido” de Bocage podemos ver que o poeta constrói uma escrita que à primeira vista mantém a aliança que foi forjada ao longo da sua carreira com os seus leitores. Essa aliança entre escritor e leitor estabelece que o autor vá sempre transgredir as regras sociais vigentes, contudo, nessa obra o autor vai quebrar este contrato e subverter as normas que lhe foram impostas.

À primeira vista, Bocage leva o seu leitor a crer que a aliança que existe entre eles será mantida como nós podemos ver nos versos que estão neste parágrafo “ Quer seja curto ou comprido /Seja fino ou muito grosso /É um órgão muito querido /Por não ter espinhas nem osso” Bocage. Os versos anteriores nos levam a acreditar que o poeta está falando sobre o órgão sexual masculino. Dessa maneira o poema é inteiramente escrito. Uma narrativa que a todo momento leva o leitor a pensar que a aliança entre eles será mantida, pois, o escritor se mantém, constrói o seu poema de forma dúbia(como veremos mais à frente), mas que para os seus leitores não é, pois a aliança que anteriormente foi construída indica que este poeta é um transgressor de valores morais estabelecidos e neste poema se manterás.

Apesar da aliança existente , podemos ver que Bocage quebra os juízos de valores que haviam na sociedade da sua época. Ou melhor leva a sociedade(ou melhor dizendo ,os seus leitores) a quebrar esses juízos de valores ao inferir algo que ele diz no seu poema, mas na realidade não diz “ Quando uma dama aparece/Ei-lo a pular com fervor/Se é um rapaz, estremece/Se é velho, tem pouco vigor/O seu nome não é tão feio/Pois tem sete letrinhas só”. Podemos ver nestes versos que o poeta se utiliza do subentendido para levar os seus leitores a romper com o pensamento moralista da época. Dessa forma, ele consegue levar, aqueles que o leem, a acreditar que continua a ser um subversivo e dessa forma mantém a aliança que tem com os seus leitores.

Essa outra estrofe exemplifica bem o que foi dito anteriormente, O poeta utiliza o subentendido para fazer o seu leitor transgredir o pensamento de sua época ,contudo ele( o autor) não transgride. “Tem um R e um A no meio/Começa com C e acaba em O/C _ R A _ _ O/Nunca se encontra sozinho/Vive sempre acompanhado/Por outros dois orgãozinhos /Junto de si, lado a lado/O nome destes porém/Não gera confusões/Tem sete letras também”

Na última estrofe do poema o poeta rompe a aliança com os leitores e também a institucionalização como poeta “pornográfico” e subversivo, ( esse status construído por ele e mantido por muito tempo depois da sua morte).

Aqui abre-se um parêntese para comprovar que Bocage ,apesar de ter sido um romântico, sátiro e lírico, constrói para si a imagem de alguém que é pornográfico , libertino e irreverente como podemos ver na última estrofe do soneto “Epitáfio”

"Aqui dorme Bocage, o putanheiro:

Passou a vida folgada, e milagrosa:

Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro." Bocage

Retomando a análise do poema “Quer Seja Curto ou Comprido”, Bocage leva( no decorrer da construção e leitura do seu poema) os leitores a acreditar que a aliança será mantida e a subversão existirá, contudo essa aliança será quebrada e ele subverter a ordem ao não subvertê-la .Explicando melhor, ao ser institucionalizado como um poeta subversivo cria-se a ordem que se manterá dessa forma, contudo ao não ser ,ele quebra as regras e subverte as normas que lhe foram imputadas .Esse fato podemos ver nos versos finais “Para acabar com o embalo/E com as más impressões/Os órgãos de que eu falo…/São o coração e os pulmões.”

Análise do Poema em lina reta de Álvaro de Campos. A subversão das normas de conduta da sociedade e a estética e recepção utilizadas para subverter

No poema modernista “Em Lina Reta” de Álvaro de Campos a ordem (aquilo que é institucionalizado ,considerado normal para a sociedade e regra comum para todos seguirem) foi subvertida.

Antes de mais nada, devemos ver como o poeta descreve os homens da sua época. Esses são descritos como seres irrepreensíveis que são campeões em tudo que fazem, ou melhor são como os heróis gregos que se aproximam dos deuses “ Nunca conheci quem tivesse levado porrada/Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo” e para reforçar essa imagem usa a si como contraponto “ E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil/Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita/Indesculpavelmente sujo .Com isso ele estabelece o comportamento capitalista institucionalizado de sua época. Ao mesmo tempo, ele subverte esse fato ao escrever que é o oposto dos seus amigos.

No continuar do seu poema obversaremos que o heterônimo de Pessoa continua a subverter as regras da sociedade quando diz na segunda estrofe que “Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho/Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, absurdo/Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas/Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante/Que tenho sofrido enxovalhos e calado ”.O poeta nesses quatros versos se diz um transgressor, pois não fazia aquilo que foi convencionado pela comunidade em que vivia. Para ser mais claro ,um homem não deveria sofrer enxovalhos, ser mesquinho, arrogante, impaciente e descuidado com a sua higiene. Tudo que o poeta é ou faz. dessa forma ,subverte aquilo que estava institucionalizado.

A própria estética e estrutura do poema já é subversiva .Tomando como padrão institucionalizado a estrutura tradicional da poesia podemos dizer que ela era uma forma de manter as normas estabelecidas por um determinado grupo de pessoas. Mas, Campos quando modifica esses elementos consagrados e opta por algo não convencional, realiza a subversão das normas vigentes .Com isso, ele rompe com a institucionalização cultural e capitalista.

Conclusão

Neste estudo, mergulhamos profundamente na relação complexa entre a sociedade e a literatura, com um foco especial na poesia, e analisamos poemas representativos de diferentes escolas literárias. Nosso objetivo foi compreender como a sociedade desempenha um papel fundamental na institucionalização da literatura, delineando os motivos que a levam a agir dessa forma, bem como examinar como a poesia desafia esses contratos sociais preestabelecidos.

A sociedade, por natureza, é uma entidade complexa e em constante evolução, repleta de normas, valores e crenças que orientam o comportamento humano. No entanto, a interação entre a sociedade e a literatura é uma via de mão dupla. A sociedade busca refletir seus valores e normas na literatura, ao mesmo tempo em que a literatura, por meio de suas diversas formas, influencia e, às vezes, subverte esses mesmos valores. A literatura é, portanto, uma espécie de espelho que não apenas reflete, mas também molda a sociedade.

Como demonstrado em nossa análise, a sociedade constrói um contrato social, uma aliança tácita com os escritores, onde a liberdade individual do autor é sacrificada em prol da liberdade coletiva. Os escritores, por sua vez, assumem a responsabilidade de serem os representantes culturais de sua época. Eles são incumbidos de transmitir os valores, as normas e as questões prementes da sociedade em suas obras. Esse fato pode ser percebido em obras como a “Eneida “ de Virgílio que entre outras funções teve a finalidade de transmitir valores, ensinamentos e educação para os indivíduos que compunham a sociedade da época e as gerações futuras. seria simplório dizer que a literatura se resume só a esse papel, contudo, ignorar essa atribuição também seria. Com isso percebemos que em determinado momento o autor sacrifica a sua liberdade em detrimento da sociedade em que vive.

A literatura, portanto, é um meio pelo qual a sociedade perpetua seus valores e crenças, muitas vezes institucionalizando-os em obras que representam o pensamento de uma época. Alguns autores mantêm essa aliança, criando obras que aderem estritamente às normas da sociedade de sua época. No entanto, até mesmo aqueles escritores considerados transgressores firmam um tipo peculiar de contrato social com a sociedade, um pacto que os designa como subversores das regras estabelecidas.

A poesia, por sua natureza flexível e subjetiva, emerge como um terreno fértil para a subversão. Poetas como Camões e Pessoa desafiam abertamente as normas sociais, rompendo com as expectativas da sociedade de sua época. No poema "Endecha à Bárbara escrava", Camões desafia a convenção de sua sociedade ao declarar seu amor por uma escrava, que não atende aos padrões de beleza aceitáveis da época. A subversão nas palavras de Camões é ainda mais evidente quando ele afirma que nunca viu uma mulher mais bela do que aquela que o mantém cativo. A poesia de Camões subverte o padrão de beleza e redefinição de normas.

No poema "Quer seja curto ou comprido" de Bocage, o autor conduz o leitor a acreditar que a aliança previamente estabelecida entre autor e sociedade será mantida. Ele constrói uma narrativa aparentemente em conformidade com os valores morais que a sociedade espera dele sociedade. Para tal, utiliza-se dos subentendidos para levar os leitores a quebrar com o pensamento moralista da época. No entanto, na conclusão do poema, Bocage quebra essa aliança, subvertendo as normas e levando a sociedade a questionar seus próprios valores.

No poema "Em Lina Reta" de Álvaro de Campos, a poesia modernista subverte a ordem estabelecida e desafia as normas de conduta da sociedade. A linguagem, estrutura e estilo do poema quebram com as expectativas, demonstrando a capacidade da poesia de romper com a institucionalização cultural, além de romper com o sistema capitalista da época.

Em resumo, este estudo ressalta que a literatura e a poesia, em particular, não são meras expressões de uma sociedade, mas sim uma força que a influencia e a molda. A poesia, com sua capacidade de subverter e desafiar as normas, representa uma ferramenta essencial para a evolução e o questionamento da cultura e da sociedade. Ela não se limita a refletir os valores da época, mas muitas vezes os desafia e os recria. Portanto, a poesia permanece como uma voz poderosa na constante conversa entre a sociedade e a literatura, moldando o nosso entendimento do mundo e desafiando as normas institucionalizadas.

Bibliografia

MAFFEI,Luis ; FINGIMENTO E ESTESIA EM CAMÕES

ANDRESEN,Sophia de Mello Breyner;Luís de Camões Ensombramento e Descobrimento

CAMÕES, Luís; Endecha Bárbara Cativa

BOCAGE,Manuel Maria Barbosa ;Poema das Sete Letras

CAMPOS, Álvaro de ;Em Lina Reta.