Abôio Mojubá

Vieram todos afinados pelo corte do “Machado de Assis”! Foram magnâmicos, não tiveram vergonha de enobrecer o seu regionalismo! Embrenharam-se “agreste adentro”, se transformaram em escritores planetários e alcançaram uma cadeira na “Academia”!

Nos anos oitenta eu ia de Itapecuru Mirim – MA na direção de Chapadinha, naquela época só havia pequenos trechos de asfalto poucos quilômetros a frente de Vargem Grande, parei meu carro para contemplar uma cena inesquecível e para minha sorte logo ali na frente era um ponto de almoço. Estacionei meu carro ao lado de uma grande árvore seca para ter uma melhor visão daquele acontecimento, pois teria que esperar um longo tempo, não era uma boiada pequena, percebi pela comitiva de frente com dois cozinheiros e umas dez mulas todas com duas “bruacas” (caixotes) uma de cada lado, mas o grande espetáculo não era só os “bois” de chifres grandes e bravos, os bois não eram grandes, todos possuíam altura linear. Uma imensidão de bois pintados, amarelos com pequena malhas brancas! De repente um boi malhado de grandes manchas brancas desgarra da boiada tentando escapar, logo de imediato foi seguido por um vaqueiro que gritava levemente sem grandes ameaças “rê boi, rê boi, rê boi” até que o boi atendesse o apelo do homem. O que parecia uma demora cansativa se transformou numa recreação! Os dois vaqueiros da frente (cozinheiros) vestiam normalmente. Somente os chapéus eram nordestinos. Isto é, feito de couro batido todo ornamentado com rosetas e quebrados na testa com aba para o alto (surgigola) bem apertados para não caírem (barbelas) e a seguir vinham os “ponteiros” todos vestidos a caráter isto é uma roupa toda de couro batido e trabalhado ornamentadas com belíssimas rosetas que sobrepunha a roupa normal, eram bois que não acabavam mais, a seguir vinham os “meieiros”, estes falavam com a boiada a todo instante e parece que os bois já os conheciam. Depois de mais de uma hora na parte de traz vinham os culateiros sob o comando do capataz! Uma cena para Hollywood, o capataz usava um enorme berrante que ao passar por mim foi logo levantado e com seu assopro fluiu um som alto e dominante que após algum tempo foi respondido por um dos “ponteiros” que logo logo começou um repique de sons comunicando que ali era uma parada para o almoço, isto já passava de uma hora da tarde.

Aqueles vaqueiros vestidos com aquelas roupas feitas sob medidas trabalhadas artesanalmente tinha um tom amarelado e brilhavam com aquele verniz forte amarronzado, aqueles uniformes lhes davam uma personalidade dominante sobre aqueles bois sadios e resistentes, pois não demonstravam canseiras após alguns dias de viagem, e era somente por este detalhe que aqueles mais de vinte vaqueiros eram todos experientes e já contavam com anos de estrada! Não me contive, esqueci de minha pressa e fui até aquele ponto de almoço garimpar alguns conhecimentos com aqueles mestres. Era agora ou nunca, não teria outra oportunidade de enriquecer meus conhecimentos sobre costumes e linguajar daquela profissão, me aproximei de um senhor calmo e sorridente o mais disponível de todos, eu já sabia que ali estava minhas histórias, eu não sabia o que era um jibão, um alforge, um bisaque ou sugigola, seu “Salustiano de Ambrósio” maneira de dizer nordestina puchou a conversa aquele apontador que todos carregam (facão de lâmina grande) preso na cabeça da sela (arreio). É quando um boi quebra uma perna todos do abôio se reúnem e em minutos quarteiam e salgam um boi em minutos, não temos tempo a perder! Salustiano me confidenciou sobre um “boi” arribado por nome de “Rochedo” devido ter a cor de roxo escuro, quase preto que era o troféu cobiçado por todos os vaqueiros da região! Devido dois vaqueiros terem perdido a vida e outros saíram quebrados o “boi” era o cão (demônio) se aproximava dos currais a noite e matava os reprodutores das fazendas, bebia água de quinze em quinze dias irregularmente e não seguia a mesma trilha o “boi” era o cão! Passei a rastreá-lo a noite de cima de “árvores”, foram meses a fio, o melhor dos desafios! Salustiano me contou que o boi correndo a noite na caatinga os espinhos pontudos que vai atentando, segurando e rasgando o couro do boi vai deixando aqueles sinais luminosos única pista para segui-lo!

Salustiano com várias cicatrizes adquiridas nas capturas de “bois arribados o enriqueceu com várias experiências, ele me contou que descobriu o porquê aqueles vaqueiros perderam suas vidas na captura do “boi” rocheado ali no precipício do Boqueirão das Almas! O Rochão vinha correndo naquela direção, ao se aproximar do despenhadeiro deixava que o vaqueiro se aproximasse dele e ali na boca da morte Rochão virava de uma só vez e o cavalo passava direto para o abismo, ou parava de uma só vez, nos cascos e o vaqueiro caia a frente. Havia três seguimentos e “Rochão” nunca seguia a mesma trilha, mas Salustiano com muito tempo de “janela” (experiência) armou alçapão em todas as três trilhas e toda noite em seu cavalo escolhido de confiança entrava para a caatinga e em cima de uma enorme árvore de umbu aguardou até que o Rochão passou, Salustiano pacientemente aguardou que o “boi” fosse encher a barriga de água e voltasse. Rochão custou para voltar, mas de madrugada até que enfim ele apareceu, o “boi” era o “cão” percebia cheiros ou qualquer barulho, foi só Salustiano descer da árvore, aquele enorme boi de chifres pontiagudos e virados para frente era a morte anunciada, desabou em gigantesca carreira atropelando tudo pela frente deixando aqueles sinais luminosos em seu trajeto, corria em direção do Vale da Morte! Não havia espinheiros, moitas de cipós ou cerca de arame que segurasse aquele gigante! Aquele gigante tinha fôlego e energia para correr três ou mais dias sem parar, aquela tonelada de carne pura não havia braço de vaqueiro que conseguisse segura-lo! Era o representante vitalício, e a morte anunciada! Chegando na garganta do “diabo” o Rochão já cantava vitória, mas o cavalo de Salustiano conhecia quando se aproximava de um precipício devido a queda do ar. Diminuiu sua velocidade e ficou aguardando ordens. Salustiano puchou as rédeas para a esquerda e apertou o trigo nas esporas, não deu terreno para o Rochão, para que ele escolhesse umas das trilhas, o “cão” não acreditou no que estava vendo, pela primeira vez se viu acuado e não teve tempo para suas artimanhas, pois nas suas popas pela primeira vez sentiu o bafo de um cavalo! Era tudo silêncio, o experiente vaqueiro sabia que não podia gritar, ou seja “aboiar”, pois o cão viraria para traz e alvejaria ele ou o cavalo! Foi um estrondo a queda do cão, que quase encheu o alçapão.

O Rochão deu um único berro (mugido) quando percebeu que havia quebrado uma perna aquela barriga cheia de água o tirou a força para o grande combate. Salustiano rapidamente antes que o monstro recuperasse suas forças alçou mão de seus dois grandes laços de cordas fortes e bem trançadas laçando a cabeça do Rochão e amarrando em fortes árvores um em cada direção evitando a reação do gigante, caminhou novamente na direção do cavalo trigo que o aguardava serenamente aguardando ordens e atento a qualquer movimento do Rochão. Salustiano tirou seu grande apontador da cabeça da sela, este sempre bem afiado, caminhou até chegar a uma distância segura da cabeça do cão, levantou seu braço o mais alto que pôde e desfechou um golpe fatal na nuca do gigante que expeliu um enorme bufado que foi soprando todas as folhas secas que estavam a sua frente! A notícia se espalhou por todo aquele vale e todos os vaqueiros da região vieram ver o desfecho do cão! Salustiano me confidenciou: aquele boi me venceu, só foi abatido pela armadilha, quando vi aquela tonelada de carne na minha frente não tive mais dúvidas, vaqueiro algum teria braço para segura-lo no “laço”! Hoje sua cabeça se encontra presa acima do portal da minha “casa”, mas ele não morrei, fiquei sabendo que em quase todas as fazendas existem filhos daquele monstro, bezerros rochos e enormes e quando ficam adultos ninguém tem mais dúvidas, a confirmação está em seus chifres e nunca aceitam arreio (sela)! Ao terminar caminhou em direção a sua sela que se encontrava ali no chão, pois haviam desencilhado e banhado os cavalos que se encontravam ali perto pastando uma grama verde e baixa existente ali perto do curral, de dentro do bisaque tirou o violão pequeno de oito cordas e descreveu grandes secas e grandes capturas de bois arribados em versos bem entoados todos bem trabalhados, que eu até me via envolvido dentro daquelas cenas! Não consigo esquecer aquele capataz baixo, enérgico e de uma capacidade matemática acima do normal. Subiu no moirão da porteira do curral e conferiu a boiada, quando passou os últimos bois ele chamou Matuzalém e ordenou que fosse buscar um boi que ficou para traz, indaguei ao mestre Salustiano: Nesta imensidão de bois, como ele conseguiu contá-los? Me adiantou: não sei te dizer qual o método que ele usa para contar, é um mistério ele nunca deixou um boi arribado, aquele homem pequeno a boca brilhava em ouro, o seu enorme berrante branco parecia maior que o dono, realmente um homem misterioso!

Salustiano me confidenciou: existem poucos homens iguais a ele, é pena que estão acabando com todas as estradas boiadeiras. Estão no lugar das porteiras os famosos mata-burros e a gente tem que cortar os arames de lado, está ficando uma situação complicada, contemple com boa atenção esta é uma das últimas boiadas que você está vendo, daqui pra frente serão conduzidas somente em caminhões! Agora os filhos do sertão botaram o pé na estrada, ninguém segura mais não, depois que um nordestino alcançou a “presidência” e o comando da nação! Os legítimos vaqueiros “Deus” “Deus” está a todos chamando! E esta geração mais nova tem até medo de cavalo bravo e “boi” arribado, eles pegam é no tiro!

E foi deste regionalismo que nasceram a melhor safra de escritores brasileiros planetários: João Cabral de Melo Neto, deixou o “Severino” que para os europeus passa a ser chamado de “Bil” e apostou todas as suas fichas na Severina, que se não fosse ele não chegaria até nós sua trajetória de “dezoito” filhos, todos de parteira, que em sua “via crucis” cumpriu o seu destino! Provou a nós todos que o carro “mata” mais que a fome e a pobreza! De que adianta tanta riqueza e ser aviãozinho! “Jorge Amado” contra cena entre o céu e o inferno! Aquela família de legítimos nordestinos que assistem sua única vaquinha cair desmaiada e desfalecer não agüentando mais o peso do chocalho que perambula sonhando com água, muita água dias a fio. Ao se aproximarem do “paraíso” do “cacau” ao longe avistam uma chuva, correm na direção da vila e conseguem alcançar a primeira “poça” de água. Se fartam do maná do céu e a seguir não se contendo rolam naquela água abençoada e se livra daquele suor sem “sal”! Já “Ariano Suassuna” é o inexplicável, o homem é catedrático de formação erudita, viaja com os escritores planetários, conhece a cultura européia e o seu potencial. Não teve vergonha de seu regionalismo, desceu as âncoras nas poesias de cordéis e imortalizou a cultura real! Na caatinga são todos independentes e solidários! Pois o ser jamais te abandona! Já o ter as vezes acaba! Rachel de Queiroz fechou com chave de ouro em seu livro “O Quinze”, eternizou a seca de 1915 pois deu nome aos “bois” aos quais “ela” os chamam de “rezes” eternizou a solidariedade das famílias nordestinas, quando abriram as porteiras dos currais por amor a vida animal! E manteve os coronéis com as porteiras “fechadas” José Eustáquio de Moraes descreveu a cena! Aqueles animais cabeças contadas jamais serão esquecidos, pois eles conquistam os corações e fazem parte da família.

moraesvirada
Enviado por moraesvirada em 10/03/2008
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