MBOÊ-TATÁ - a mãe d'ouro

MBOÊ-TATÁ - a mãe d'ouro

introito

I

Olho e vejo o que o outro vê:

Nos altos de extrema serra

Onde a cousa de fogo erra.

E eu... Ri sem saber porquê,

Face ao sant'elmo da terra.

II

Era fogueira que encerra

Em si ambíguo sinal

Quer de aurífero local;

Quer de aniquilante guerra

Com um desfecho mortal.

III

Era o princípio vital

Ou o espírito gerador,

Cujo sentido maior

É ir para além do real

N'uma esfera de ígneo ardor.

IV

Era Cy, o afã criador

Porquanto causa primeira

Da verdade verdadeira

Onde o ouro causa pavor

Ao jazer na ribanceira.

V

Porque na terra mineira

Às vezes lampeja agouro

Capaz de causar desdouro:

Uma voadora fogueira

A qual chamavam Mãe d'Ouro.

VI

Claríssimo indício de ouro

Que gera e mostra a jazida.

Quem vê, põe em risco a vida.

Mas, vivendo, acha o tesouro

Que nos rincões tem guarida.

VII

Tanta riqueza escondida

Nem chegava a ser riqueza...

Ganga bruta de impureza

Que jaz desapercebida

Bem no meio da natureza...

a febre do ouro

VIII

Mas extrair sua beleza

Tornara-se uma obsessão:

Desde a idade da razão,

Explora essa redondeza

A garimpar no sertão.

IX

Costumado à solidão,

E provado em bravos feitos

Busca de todos os jeitos

Ao faiscar pelo aluvião

Os seus sonhos imperfeitos.

X

Quem -- alheio a alheios direitos,

Tem tanto afã visionário

Percorrendo o imaginário --

É, p'ra todos os efeitos,

A história d'um solitário.

XI

De facto, era por tão vário

Quanto caprichoso acaso,

Que lhe sobreveio ao ocaso

O sinal mais temerário

Do qual nem fazia caso.

XII

E a noite logo deu azo

Àquela febre terçã

Que delira a mente vã.

Onde o mal mal dava prazo,

Causando fraqueza insã.

XIII

Suadeira até de manhã

E, em espasmos, calafria

A espinha durante o dia.

Certo, depois de amanhã

Vai e volta a maladia...

XIV

Quando se aprumava, via

Um gavião revoando o vale.

À espera que ele altercale

Em volteios a penedia

Até que a rocha lhe fale.

XV

A cruz pesa quanto vale

E é sua sina os sinais

Que ele enxerga onde os demais

Nada veem... O que equivale

A não ser nada de mais.

XVI

Mas lá no meio dos Gerais,

Onde não tinha viv'alma

Segue a vereda da palma:

Mata de buritizais

Rio acima em tarde calma.

XVII

E a fúria que ele traz n'alma

O faz avançar nos seixos

Que rolam feito os desleixos

D'água que nunca se acalma

Passada a vau pelos queixos.

XVIII

Trouxe consigo apetrechos

Que ali deixou sobre a areia.

Pôs-se a bater a bateia

E acha xibius nos fechos

N'uma ou n'outra loca cheia.

XIX

Lá pousa e acende candeia

Pronto para outra quentura...

Enquanto o ardor é loucura

A sua, se lhe incendeia

A persistir na procura.

XX

No delírio lhe figura

A imagem de dama leda,

Que vestida d'alva seda,

Pela noite mais escura,

Brilha em loura labareda.

a mãe d'ouro

XXI

Feito estrela do céu queda,

Vinda de serra remota

Pairava por sobre a grota

Alumiando a ampla vereda

Através de estranha rota.

XXII

E ela diz: -- "Onde o ouro brota,

Há um fogo que não queima.

Achar é questão de teima,

Depois de muita derrota,

Tido por doido ou toleima".

XXIII

"Se o ouro se prova na queima

Os homens, no sofrimento.

É passando um mal momento,

Que se vê a força e a fleima

Necessários a um intento".

XXIV

"Não tenho conhecimento

De homens de feliz memória

Que alcançassem real vitória

Senão por merecimento

Face à uma dor provisória.

XXV

"Tu -- garimpeiro sem glória,

Que buscas fortuna só --

Com seus olhos cheios de pó

Louco me enredas a história,

Ao desatar cada nó.

XXVI

"Tu -- garimpeiro sem dó

Que achas o melhor de ti --

Chegaste-me agora-aqui

Tão miserável e só,

Igual a tantos que vi."

XXVII

E, enigmática, sorri

A mulher envolta em luz,

Cuja aparição o induz

A crer que a sorte lhe ri

No ouro que d'ela reluz.

XXVIII

-- "Almejas os factos nus:

A pepita, o garimpo, a chousa...

Contudo, entre a causa e cousa,

Exacto aquilo que intuis

Indica onde o ouro repousa".

XXIX

"Seja um pássaro que pousa;

Seja uma estrela que brilha;

Há mistério e maravilha

Que escrevera o fado em lousa

Pela tua incerta trilha".

XXX

"Quanto sertão se palmilha

Apenas por vãos indícios?

De que valem artifícios

Se pego pela armadilha

Do mais temível dos vícios."

XXXI

"Sim, do ouro mais malefícios

Conheceste que benesses.

E a febre de que padeces

É só um dos sacrifícios

Na lavra de incertas messes..."

XXXII

Nem mesmo nas suas preces

Sonhou nosso herói esta hora

Na qual a aurosa senhora

Ciente de seus interesses

O consolasse por ora.

XXXIII

Sua visão noite afora

Torna a ilusão agridoce

Que bons sonhos enfim trouxe.

'Inda febril, muito embora,

A aurora mais cedo fosse.

a lavra

XXXIV

"O que lavra toma posse

Da terra já devoluta".

Há muito tempo isso escuta

Desde que, inda precoce,

Vinha catar ganga bruta.

XXXV

No garimpo, era labuta

Sol a sol dentro do rio.

Recorda-se um serro frio

D'onde a feição resoluta

Quando era o ouro desvario.

XXXVI

Recorda-se do fugidio

E do jeito desconfiado

Que aquele povo calado

Tinha no seu lavradio

Sempre esperando algo errado.

XXXVII

Em meio ao trabalho dado

Já amoitava curiango.

Depois caçava calango,

Que comia bem tostado

Que nem asinha de frango.

XXXVIII

À noite, tinha um muxuango

Contando causos em roda.

Por vezes tirava moda

Com uma voz de chimango

Que grunhia à mata toda.

o achado de Sabarabuçu

XXXIX

Fio de conversa se enoda:

--"Diz-que uma bola de fogo

Surge à noitinha tão-logo

A última esperança engoda

Um andarilho sem jogo."

XL

"Havia partido a rogo,

Andando de pés descalços.

Por seguir amigos falsos,

Passou mais e mais afogo

Metido em seus vis encalços."

XLI

"Fugindo de cadafalsos,

Deu para viver nos breus

Longe de si e dos seus.

Depois de tantos percalços,

Só no sertão: Ele e Deus..."

XLII

"Errante como os judeus,

Andou todos os caminhos

Nas brenhas dos matozinhos

Cerca ao Mirante do Adeus:

Longes três vezes sozinhos!"

XLIII

"Tinha tão-só por vizinhos

Vastos campos de macelas

E as canções tristes e belas

Dos urutaus em seus ninhos

Em noite sem lua e estrelas."

XLIV

"Sem a companhia d'elas,

A escuridão se aprofunda.

Quando, das rochas oriunda,

Umas luzes amarelas

Onde a solidão abunda."

XLV

"A Mãe d'Ouro tudo inunda

De luz intensa e dourada.

Às vezes fica parada;

Depois, pela grota funda

Rasga os céus da madrugada."

XLVI

"Sobre a terra iluminada

Percebe pedras faiscantes

E as cata, pressuroso, antes

Que a luz volte para o nada

Luzindo só por instantes."

XLVII

"Ao contrário, fulgurantes

Se veem sob a claridade

Vendo que ali, na verdade

,Até as penhas brilhantes

Tinham áurea qualidade."

XLVIII

"Diante da intensidade

Do brilho do ouro existente,

De serra resplandecente

Chama essa localidade:

Sabarabuçu, a ausente."

XLIX

"Sim, pois vazio de gente

E longe (longe!...) de tudo.

Ao partir, o pico agudo

Visto do sul tão-somente

Lhe pareceu carrancudo..."

L

"Um gigante que jaz mudo...

Onde, em perfil, a caraça

D'aquela imensa massa.

Assustando, narigudo,

Quem por acaso ali passa."

o bamburro

LI

"Chegando à vila, na praça

D'um concorrido mercado

Faz escambo do ouro achado.

E à noite, em farta cachaça,

O povo todo embriagado!"

LII

"O caso fica afamado

À medida que o mineiro

Gasta mais e mais dinheiro,

Comprando terras e gado

De quem passasse primeiro."

LII

"À tarde, ele faz fagueiro

Barba, cabelo e bigode...

À noite, n'algum pagode

Bebe pelo tempo inteiro

Enquanto o povo sacode."

LIII

"Tendo tudo que o ouro pode,

Pôde tudo que o ouro tinha.

Viveu como um rei sem rainha!

E embora o mundo 'inda rode

Triste final se adivinha..."

tocaia e pau de arara

LIV

"Quando das fazendas vinha,

A jagunçada lhe veio:

Uns dez vindo em rodeio.

Nem tira o punhal da bainha

E o levam para um passeio..."

LV

"Foi um negócio bem feio:

Põem o coitado no pau...

E o prendem feito jirau

Socando bastante e em cheio,

Chamando-o de varapau."

LVI

"De vera, um povo bem mau.

Em extremo desconforto,

Batem até ficar torto.

Para saber-se o local

Deixaram-no semimorto..."

LVII

"Deitado ali boquitorto

E cheio de roxos no abdome.

Por dias com sede e fome

Suspira a sangrar absorto:

"Aqui morre um home!"..."

LVIII

"A morte aumenta o renome

D'aquela só descoberta.

Mas a sua trilha aberta

Junto co'o mineiro some

Pela vastidão deserta."

LIX

"A localidade incerta

Da alta Sabarabuçu

Virava lenda e tabu

Do povaréu que se alerta

Co'a caraça jururu..."

LX

Súbito uivo no bambu

Lhe interrompe a narrativa:

Bem perto d'ali, esquiva,

Onça em rastro de suaçu

Põe alerta a comitiva.

LXI

A ameaça da onça lhes priva

Da conversa e do descanso.

Vigiam junto ao remanso

Do rio. Um fogo se aviva

À espera de novo avanço.

o garimpo nas catas altas

LXII

Mas pelo sertão expanso,

Aquele nosso rapaz

Anda até onde é capaz

Vendo a loura, louco manso,

Onde febril ora jaz.

LXIII

Transcorrem dias em paz,

Sem nada de muito estranho

Embora as noites d'antanho:

Sempre favorece o audaz

A sorte em válido apanho!

LXIV

Em meio a esforço tamanho

Novo garimpo constrói.

Quando em memória remói

A morte do outro por ganho

Que a cobiça alheia destrói.

LXV

De facto, queda o herói

Em furna junto à cascata.

Brilha faiscante à cata

O ouro que nada corrói

Em lavra perdida na mata.

LXVI

À noite, a Mãe d'Ouro à data

Um lugar de lavra indica.

Onde há jazida tão rica

Que até o pó d'alpercata

Ali, cheio de ouro lhe fica.

LXVII

Lampejo que clarifica

O seu olhar de colono

Como inopinado dono

D'esse ouro em pó que fabrica

No mais completo abandono.

LXVIII

Mas lhe concilia o sono

A loura, alvíssima e bela,

Que nos sonhos se revela

Como uma rainha no trono

Ou uma santa na capela.

LXIX

Cintila nos olhos d'ela

Uma luz desde o infinito

Que ardesse em áureo rito

Como se cadente estrela

Ou terminal meteorito.

epílogo

LXX

Escrevo porque acredito

Que de beleza extrema

Todo esse aurífico tema,

Não porque seja erudito

Ou porque enobreça o poema

LXXI

Sim porque desde a gema

Reluz em sólida chama.

À Mãe d'Ouro proclama:

"Antes solução que problema,

Se por ele se azafama!"

LXXII

Embora o ouro tenha fama

De ter tornado todo estulto

Quem de leis jurisconsulto:

Após milênios na lama,

Termina em cofres oculto!!

LXXIII

A despeito do tumulto,

Que turva qualquer consciência

Sonha, através da existência,

Dar à luz o ouro sepulto

Onde a riqueza e a opulência.

Mariana - 12 02 2012

RicardoC
Enviado por RicardoC em 25/07/2015
Reeditado em 26/07/2015
Código do texto: T5323714
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