A escravidão do véu, poema de José Moreira da Silva
1- A leitura o mito pessoal do autor
a escravidão do véu é poema de intensa e maviosa quentura lírica, de metáforas ricas e de linguagem exaltada, tematizando a libertação da mulher. A rapidez da linguagem e o sacolejar palpitante do ritmo versificatório destilam uma onda de raiva e até de revolta ante um quadro que o leitor logo mentaliza: cenas, veiculadas pela TV, que se reportam a mulheres árabes oprimidas por aquele espesso véu que lhes oculta o rosto e permite sejam maltratadas, se erguem uma ponta desse pano apagante (Erasmo chamava ao barrete doutoral o apagador do senso comum) para melhor enxergarem.
A linha e encadeamento temático, poeticamente construtivos e vibrantes, recaem na força de uma intensidade silo-gística, ao mesmo tempo admirável dialética poética e profética, que, à maneira de premissa maior, anuncia que os chacais - os abutres voando - desaparecerão um dia, deles ficando apenas os ossos nas cavernas. Com eles irão a tirania, a tortura, a morte. Num imediato encadeamento, um outro cenário, vibrante também, reporta-se à mulher liberta do véu e conseqüente-mente da amargura, do crime, da desilusão, tortura, aridez desértica, estertor, soluços.
Véu rasgado - mulher liberta - eis a conclusão firmada dos dois antecedentes. Então, sim, a mulher, agora ela mesma rasgando o véu, poderá satisfazer e preencher a expectativa de imagem bela, cumprir seu papel total, ser identifi-cada com a voz divina. Enfim, o mesmo papel da Virgem Imaculada, esta dada como o modelo, por excelência, de mulher renovada: graça e o sabor da vida voltando-lhe ao rosto; sentimenos de bela expressão; os lábios expostos aos beijos dos amantes; na face o sonho, a paz, beleza, harmonia, nova luz, gesto heróico. Acima de tudo, ela, gravando no deserto um retrato de glória. O que a santificara agora a dessantifica.
O poema constitui uma boa amostra da criatividade inspirada de José Moreira. Nele sempre as necessidade e presença de um além distante, ora indizível ou sacralizado, ora nas formas de segredo ou castelo, termos estes e outros carregando fortemente na metáfora. Na base sempre a dinâmica do segredo - aquele sempre segredo em construção - o segredo de Breuza, mito pessoal de Moreira buscando um mais além.
Nesta contextura, a escravidão do véu, preenche princípios gratos ao pós-modernismo na medida em que aceita o contingente, o acidental, o particular. Não o tema ou processo do poeta centrado na percepção ou volvido egocentricamente em torno de núcleos imagéticos como se fossem a percepção absoluta ou emoção pura cristalizada, dizendo de um eu que manda e comanda a fluência do que emerge. Aquele sujeito ao estilo do autor-eu romântico, confrangido no pranto existencial, sai agora dissolvido. Em vez dele, o presente e seus quadros reais articulados no simultaneísmo da experiência.
Este modo de poetar situa-se numa das linhas atuais da poesia, desestruturando o fanatismo religioso que, mais do que santificar, dessantifica. (Antonio Soares)
2 - A escravidão de véu, poema de José Moreira da Silva
Quando se forem todos os chacais,
restarem apenas ossos nas cavernas,
a tirania, o crime, o abutre vão
e cairá da face da mulher funéreo véu,
amarguras e desilusões; poderá
rir, expressar sentimentos,
expor os lábios ao beijo dos amantes,
queimar o pano negro apagante
do sabor da vida, da graça da mulher.
Quando se forem todos os chacais, mulher,
transmudar-se-ão teus soluços em riso
aberto ao mundo, com toda beleza.
Será o fim da tortura, o vôo do abutre,
sonhos banharão a aridez desértica,
emoldurando a paz, a harmonia;
cessará o estertor das oprimidas,
nova luz surgirá no firmamento
e uma voz divina - a voz de Deus -
ecoará por todos os rincões.
Vai, mulher! Rasga, queima o véu
para cumprir tua missão sagrada,
a mesma de Maria Imaculada,
em plena liberdade, mostrando a imagem bela.
Quem será melhor que tu, no mundo novo,
na família, no lar, na produção?!
Vai, mulher, mãe, amante, redentora,
brande no ar a palavra, o gesto heróico,
grava no deserto um retrato de glória!