João Gilberto – O último milagre

Danilo Nuha – Tokyo

Madame diz que a raça não melhora, que a vida piora por causa do samba

Madame diz que o samba tem pecado, que o samba, coitado, devia acabar

Madame diz que o samba tem cachaça, mistura de raça, mistura de cor

Madame diz que o samba democrata é musica barata sem nenhum valor

Madame tem um parafuso a menos, só fala veneno, meu Deus! Que horror!

O samba brasileiro democrata, brasileiro na batata, é que tem valor...

Yurakucho é talvez o bairro mais “cabeça aberta” desse arquipélago. Percebi isso numa tarde de outono, era domingo, quatro de novembro. Dalí pude ver um dia Amsterdã com traços de Barcelona. Mística carioca num bar da Rua Augusta. Pinceladas de Kurosawa na arquitetura de passado, Van Gogh e futuro. Mas com uma grande vantagem. Diferente de outras regiões do Japão, tanto faz ser estrangeiro: pois ácido é o cheiro da arte. Sendo assim, quase ninguém tem tempo a perder com ultrapassados ranços de xenofobia paranóica. Lugar escolhido a dedo para uma pintura clássica. The Bossa Nova: João Gilberto – Last miracle. Esse foi o título da única temporada de shows do baiano em 2006. Foram quatro apresentações no Fórum Hall de Tokyo, com tudo minuciosamente registrado para o primeiro DVD do grande mestre.

Nos últimos anos, muita gente reclama de João ter limitado seu repertório basicamente nas mesmas músicas. Mas, depois de presenciar o “milagre” ao vivo, a certeza é de que já foi o suficiente para colocar toda uma “terra em transe”. Como aconteceu em 2003, na gravação de João Gilberto in Tokyo, que comemorou os quarenta anos do disco Getz Gilberto, a primeira e única frase (sem violão) dita no microfone foi Kombanwa (boa noite). E já que existe tanta gente por aí que fala tanto e não diz nada, ou quase nada, João prefere usar apenas o Tom mais Vinicius da sua melodia. Requiém para a hipnose. Sem enganações: tal efeito só bate em quem consegue dançar não só com o corpo, mas também com alma, com bossa. Caso contrário, é uma grande besteira insistir, basta lembrar que quem não gosta de samba bom sujeito não é, é ruim da cabeça e doente do pé. Gente assim jamais vai ter saudade da Bahia, e mais triste ainda se for outro que acredita na glória e no dinheiro para ser feliz.

Aos 75 anos João está no auge, e continua insistindo nessa onda que se ergueu no mar. Sempre girando no compasso de um samba feiticeiro, o baiano mostrou porque é um dos músicos mais importantes da música brasileira. Dentro do teatro, duas horas de pura lisergia. Drible de Garrincha, toque de Tostão. Tudo que é pequeno, mesquinho e insignificante, agora ficara para trás. A praia era outra, mas os anos pareciam mais dourados do que nunca. Mesmo com toda lama, com todo tecno e com todo pop, nessa janela sempre vai ter um cantinho de céu e Redentor. E para quem não acredita nisso, não merece nem o gosto doce de Ipanema, e muito menos ver a garota a caminho do mar. Naquela noite, João estava tão afinado quanto água de beber, foi um choque atrás do outro. Aqueles que esperavam um mestre cansado, que ia fazer uma apresentação técnica de quase uma hora, foi surpreendido com mais de 120 minutos de "Corcovado" e céu azul.

Diante de tanta mentira, miséria e exploração, a única saída foi viajar naquele barquinho de "Bolinha de papel", "Meditação" e "Felicidade" made in "Bahia com H" aos beijos "Bim-bom" de "Ligia" no ritmo de "Um samba da minha terra" e, é claro, da "Garota de Ipanema" num doce balanço "Aos pés da Cruz". E como canta Sérgio Dávila, "uma apresentação de João Gilberto nunca é igual à outra, um registro seu, embora aparentemente idêntico na forma, traz detalhes diferentes que só o iniciado é capaz de perceber. Pois que João é para iniciados, que o resto nos perdoe".

O resto: é mar camará, e fundamental meu caro, somente o amor. Caso contrário, deixa pra lá. "Pra que discutir com madame?"

João também é acusado de alienado, prepotente e arrogante. Mas isso só passa pela cabeça de quem não conhece sua travessia. Dos vinte aos vinte seis anos, João Gilberto era quase mendigo no Rio de Janeiro. Vivia sendo despejado e, sem dinheiro nem para o cigarro, era acolhido pelos amigos. Com o sucesso, decidiu seguir a cartilha de um bom mineiro. Poderia ter escolhido as páginas plásticas de certas Caras, ou a coluna social em tristes Globos. Mas preferiu continuar falando pouco e cantando bem baixinho aos ouvidos da morena. João é tão mineiro, mas tão mineiro, que até existe uma lenda de que ele criou a famosa batida em Diamantina. E, quando era um simples anônimo, às vezes até mentia que era de Minas. Os que hoje criticam, talvez são os mesmos (ou descendentes) de quem já o achava somente outro louco sem futuro. Mas com apenas uma nota só, o “maluco” deu a volta por cima. E de que adianta ter sido simpatizante da guerrilha? Se tantos músicos (nem todos) que foram, hoje vivem dando declarações de apoio a políticos que eram esperança e não passam de chumbregueiros corruptos, de Lula a FHC. Outros dizem que João não tem voz. Infelizmente, nem todos são capazes de compreender que isso é apenas um pouquinho de Brasil. Isso é bossa nova, isso é muito natural. Mas agora Chega de Saudade. Vamos logo resumir essa história: João Gilberto não é som para ouvidos eletrônicos. João Gilberto é trilha sonora para corações subversivos.

Digo adeus ao boogie woogie, ao woogie boogie

E ao swing também

Chega de rocks, fox-trotes e pinotes

Que isso não me convém

Eu vou voltar pra cuíca, bater na barrica

Tocar tamborim

Chega de lights e all rights, good nights e faufaits

isso não dá mais pra mim!(1943)

(Wilson Batista, mais uma prova de que os sambistas eram guerrilheiros terríveis)

Danilo Nuha – Começou trabalhando aos nove anos de idade como jornaleiro e balconista de bar. Foi açougueiro, limpador de fossa, descarregador de caminhão e operário em fábricas japonesas. Formou-se em jornalismo, tem 25 anos e atualmente é um jornalista desempregado que trabalha como metalúrgico no Japão.

Danilo Nuha
Enviado por Danilo Nuha em 07/11/2006
Reeditado em 23/08/2007
Código do texto: T284534