OBRAS COMPARADAS: UM DIÁLOGO ENTRE O PRIMO BASÍLIO DE EÇA DE QUEIRÓS E A ADAPTAÇÃO DE DANIEL FILHO.

PRIMO BASÍLIO. Direção: Daniel Filho. Produção: Daniel Filho. Roteiro: Euclydes Marinho. Intérpretes: Débora Falabella, Reynaldo Gianecchini, Fábio Assunção, Glória Pires. São Paulo: Globo Filmes, 2007. 1 DVD 104 min.

Este trabalho consiste numa análise acerca das propriedades que caracterizam a obra cinematográfica de Daniel Filho: Primo Basílio. Sabendo que o filme foi baseado no livro do escritor português Eça de Queirós, far-se-á um diálogo entre as similaridades e altercações existentes entre esses dois instrumentos, considerando as diferenças históricas e sociais que influenciaram a construção de tais produções. Sobretudo, a apreciação da produção fílmica fará um exame no que concerne a verossimilhança existente entre livro e filme, visto que o enredo deste último baseia-se no primeiro.

João Carlos Daniel, conhecido como Daniel Filho, nasceu no Rio de Janeiro em 30 de setembro de 1937. Filho de ator e cantor catalão com atriz argentina, Daniel cresceu no meio artístico. É ator, diretor, produtor de televisão e de cinema. Como diretor, pode-se citar um dos seus últimos sucessos: Se eu fosse você 2.

O filme Primo Basílio é baseado, como já fora exposto, na clássica obra portuguesa de Eça de Queirós, cujo título é homônimo. O referido romance, publicado em 1878, ambienta-se no século XIX, em Lisboa, e descreve a vida de um jovem casal. Luísa, mulher cheia de fantasias românticas advindas da leitura de livros, é casada com o engenheiro Jorge e, ingenuamente, deixa-se levar pelos galanteios de seu antigo namorado e primo recém-chegado de Paris, Basílio. O romance ilícito acaba descoberto pela empregada Juliana, que enxerga naquela informação a garantia de uma boa aposentadoria após anos de trabalho. Tendo uma informação tão valiosa em mãos, a criada passa a chantagear a patroa adúltera, que se submete a fazer as funções da empregada na casa. Após a volta de Jorge, Luísa vê-se encurralada diante das chantagens e do segredo que, a qualquer momento, pode ser revelado. Num ato desesperado, e sem o auxílio de seu cúmplice lascivo, a dama recorre ao amigo do casal, o médico Sebastião. Por sorte, a empregada acaba falecendo de um ataque do coração antes de denunciar a traição. Quando se pensava no fim das provas do adultério, eis que uma correspondência de Basílio denuncia a traição, levando a mocinha a um complexo de culpa que termina causando sua morte.

Eis que se encontra no livro de Eça de Queirós o primeiro questionamento público à instituição do casamento. Obra pertencente ao Realismo e considerada uma das narrativas mais fortes da literatura portuguesa, O Primo Basílio, intencionalmente, destrói toda sentimentalidade e imaginação romântica, funcionando como um espelho da sociedade burguesa do século XIX que, de forma camuflada, vivia um largo e profundo descompasso moral. A crítica ferrenha aos padrões burgueses e às características maléficas dessa classe, sobretudo a lisboeta, chocou o público referido e causou polêmica tanto em Portugal quanto no Brasil. Com seu tom irônico e estilo preciso, Eça de Queirós desobscurece a vida de aparências na qual vivia a classe burguesa de Lisboa.

Partindo dessa construção literária, o ator/diretor de cinema Daniel Filho optou por investir numa adaptação dessa obra prima portuguesa. Então, em 2007 via-se lançado o Primo Basílio do cinema, considerado um dos filmes mais bem produzidos por Daniel. Esta iniciativa corrobora a relação que sempre existiu entre a sétima arte e a literatura, comprovada pelo significativo número de adaptações baseadas em obras literárias. Deste modo, pode-se afirmar que:

A relação entre literatura e cinema se realiza no instar da linguagem, bem ali onde se forma o pensamento. Existe porque o cinema, como a literatura, é linguagem. Porque no interior da literatura (para flagrar o movimento, o acaso, o passar do tempo) inseriu-se a imagem cinematográfica; porque desenvolvemos um outro material para a criação de formas que constroem o pensamento que constrói a linguagem, que constrói novos pensamentos: a imagem cinematográfica (AVELLAR, 2007, p.113).

Antes de qualquer análise acerca da verossimilhança entre livro e filme, faz-se necessário apontar o fenômeno de deslocamento ocorrido entre as duas produções. Primeiro, é relevante apontar a inevitável transposição da linguagem proveniente da mudança entre literatura e cinema, pois a forma audiovisual requer, obrigatoriamente, alguns ajustes. Depois, como explicita FRANCISCO, “quando se fala em adaptação, se fala em processo de intertextualidade” (2010, p. 29), assim, abre-se a obra para novos possíveis olhares de quem a está adaptando, podendo transcorrer modificações subscritas pela posição a qual alicerça as ideias do adaptador. Neste sentido, o tempo da obra original não importa, é valido apenas,

Um presente permanente... o resto do tempo não existe, a memória não existe, existe só a coisa ali presente, existindo. Nem memória, nem passado, nem futuro: não existem, ou existem de outro modo. O cinema conta tudo no presente... um tempo diferente daquele da palavra escrita, que se refere a um presente que já foi, que não é real e ali como o do filme (AVELLAR apud FRANCISCO, 2010, p. 29).

Há também um deslocamento histórico, social e geográfico. Abandona-se a cidade de Lisboa do século XIX e chega-se a grande São Paulo dos anos 50, onde não permanece o glamour europeu, tampouco a intencionalidade de denunciar a burguesia hipócrita do século XX. O cenário da obra muda. O Brasil está sob o governo de Juscelino Kubistchek e vive um período de construção da futura capital do país – Brasília - e da busca instantânea pelo progresso. A era do enredo já não é a mesma e presencia-se a introdução da TV nas residências da população brasileira, pelo menos nas famílias de classe média. Apesar dessa evolução temporal, e por que não dizer social, alguns fatores permanecem intactos e correspondem fielmente à construção realizada por Eça.

Alguns aspectos apresentados por Eça não se dissociam do olhar posto por Daniel. Por exemplo, no que concerne ao casamento de Luísa e Jorge, é notável uma frieza e até certo conservadorismo na relação entre marido e mulher, tanto perante a sociedade quanto nas práticas sexuais. É perceptível, ainda, que apesar das fantasias românticas não efetivarem uma interferência imensamente perigosa no que concerne ao sustentáculo do casamento na década de 50, vê-se a substituição, coerentemente instalada, da televisão como meio de insinuação a práticas acometidas de ilegalidade social e/ou moral. Embora já não se deva dar tanta referência a influência dada pelos livros, a inocência de Luísa ainda continua sendo ameaçada pelas imagens e pelos exemplos expostos pela TV.

Tendo em vista que as produções cinematográficas permeiam por um público diversificado e o tempo não transcorre como num romance, é necessário que haja um recorte extremamente minucioso, a fim de que permaneça no longa - apesar de todas a limitações temporais, estilísticas e de gênero – a essência da obra adaptada. Isso só é possível, segundo Francisco (2010), porque a narrativa do cinema se dá de forma “sincrética”, ou seja, os fatos não são descritos linearmente, são condensados e exibidos num único jogo cênico. Por isso, no romance proibido entre Luísa e Basílio as cenas dos encontros são rápidas, mas coesas e bem encenadas. A troca de bilhetes e as carícias também são trabalhadas de uma forma acelerada, porém não provocando uma superficialidade nos atos.

No tocante a relação de Luísa com sua empregada Juliana, essa última personagem não só funciona como desencadeadora de um conflito familiar suscitado pelas ameaças à segurança do casamento de sua patroa com Jorge, como também do conflito, e este mais real à década de 50, entre patroa e empregada. O fato de possuir em suas mãos provas documentais que poderiam desestruturar os alicerces de um casamento morno, porém estável, a fez crer num escape social que poderia ser provocado pela possível, e desejada, riqueza. Esse poder momentâneo possibilitou a serviçal - antes instrumento de dominação submetida as mais sub-humanas condições de vida - inverter os papeis e tornar-se agente dominador. Esse conflito eleva-se a uma amplitude social, perpassando os limites residenciais e prescrevendo uma vingança de classes, é o conhecido “feitiço contra o feiticeiro”. Contudo, pode-se considerar que Daniel Filho não caracterizou a Juliana do filme conforme desenhada em O Primo Basílio de Eça de Queirós. As ameaças se justificam, majoritariamente, pelo interesse em um fim mais tranquilo, e não é perceptível tamanha ferocidade com qual a empregada pratica seus atos de ameaça no livro, causando ao leitor um desejo cruel de que esta tenha um fim trágico.

Outro foco social que permanece intacto apesar da transposição de quase um século entre a ambientação das duas produções é o espaço social da segunda empregada. Obviamente, essa personagem não costuma ganhar muita atenção, haja vista o papel secundário que lhe é atribuído. É imprescindível ressaltar que nas duas obras esta personagem sofre com as mesmas tristes condições de moradia que a Juliana, mas, possivelmente por ser negra, em nenhum momento eclode qualquer tipo de insatisfação ou ânsia de liberdade por parte da mesma. Isso pode ser considerado a validação de um estereótipo de inferioridade racial, que impossibilita o representante de uma minoria agir contra seu encaminhamento histórico. Juliana, como branca, pode sentir-se humilhada e ofendida e lutar para reverter sua posição, apesar de que nesse caso, o fim da inconformada e ambiciosa servente, tanto na obra como no filme, não é dos melhores.

Poder-se-ia discutir variadas temáticas da obra eciana que foram transcodificadas através da produção fílmica. Contudo, o aspecto que se irá frisar a seguir trata-se do pensamento machista engendrado no livro O primo Basílio e, que permanece intacto na adaptação de Daniel Filho. A priori, se poderia imaginar que a mudança de contexto histórico e social levaria a uma modificação ideológica no desenrolar da nova trama. Porém, como corrobora Francisco, “[...] o conflito essencial das obras permaneceu bastante semelhante. A ideologia da obra permanece a mesma. O tempo do romance para o filme foi transposto, mas a situação da mulher permanece, segundo a ideologia do autor do romance” (2010, p. 118). Toda punição recai sobre a figura da mulher, o antagonista, representado pela figura masculina de Basílio, conquista e ilude a ingênua e apaixonada prima, mas não sofre nem um castigo.

Por outro lado, quando se pensava que não haveria mais sofrimento após a morte da empregada, eis que surge a autoflagelação de Luísa. Um complexo de culpa que reúne em si, sem sombra de dúvidas, a ideologia machista que, de tão recorrente, a própria protagonista carrega consigo e, assim, condena-se à culpabilidade e ao martírio que provoca, enfim, seu exímio fim. O perdão de seu marido não foi suficientemente efetivo no que concerne ao convencimento de que o adultério teria perdão concedido, e então, a crise de consciência consome a personagem como uma doença degenerativa, provocando um fim, talvez insólito, mas inevitável. Já Basílio termina triunfante, mostrando indiferença ao cruel destino de sua prima amante.

Diante dessas comparações, chega-se a conclusão de que apesar das mudanças inevitáveis - provocadas pela troca de veículo comunicativo - e das dissociações entre a linguagem escrita e a linguagem audiovisual, o filme ainda mantém-se fiel ao corpo da obra de Eça. O tom irônico da escritura eciana foi respeitado nessa nova versão sofrendo algumas disjunções apenas no roteiro, haja vista a necessidade de condensar mais de 300 páginas em pouco mais de uma hora e meia de filme. O próprio Daniel relata que existem 18 minutos do filme que o tornariam “mais Eça” , contudo, não foram editados porque iriam estender a adaptação, cansando o público. Assim, considerando as devidas reformulações, o longa é uma produção significativa no que concerne à promoção, mesmo que mais superficial, do clássico romance eciano. As mesmas discussões sobre as instituições, as diferenças entre classes e, principalmente, a ideologia machista que está engendrada na sociedade contemporânea continuam compondo O Primo Basílio da telona, tornando-o, portanto, importante instrumento de trabalho no que tange ao estudo/investigação do trabalho de Eça de Queirós.

REFERÊNCIAS:

Biografia de Daniel Filho

Disponível em< http://pt.wikipedia.org/wiki/Daniel_Filho#Biografia>. Acesso em 01/12/2010.

FRANCISCO, Eva Cristina. O Primo Basílio: Da Narrativa Literária à Fílmica. Marília, 2008, 129 p. Dissertação (Mestrado em Comunicação, Área de Concentração em Mídia e Cultura: Ficção na Mídia). Universidade de Marília, 2010.

Allisson Nato
Enviado por Allisson Nato em 26/04/2011
Reeditado em 26/04/2011
Código do texto: T2932752
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