Ideologia, história e discurso: Os caminhos da leitura

Este trabalho consiste na apresentação do que é e de como a leitura é produzida segundo a concepção da Análise de Discurso, como também numa abordagem crítico-reflexiva sobre o conflito existente entre tradicionalistas e a ALB (Associação Brasileira de Leitura) no que concerne a concepção de leitura e a posição do brasileiro neste quadro

Antes de adentrar no tema leitura é importante explicar,

simplificadamente, o que seria a Análise do Discurso e qual o seu papel na área da linguagem. Para Marandin (1979), “a linguagem não é um conceito, mas uma noção fluida submindo um nevoeiro de fatos e casualidades (enunciação, determinações históricas, sociais, etc.)” (Apud ORLANDI, 2001, p.178), assim é perceptível a existência e a diversidade de influências atribuídas à linguagem para que ela se concretize por meio dos signos linguísticos.

Para Orlandi (2001, p. 180), a Análise do Discurso pode ser vista como “uma forma de conhecimento da linguagem que procura constituir sua metodologia e suas técnicas” para se chegar à explicação do porque determinado enunciado possui este ou aquele sentido. Ela tem um caráter exploratório e, por vezes, uma relação imprecisa e um modelo de análise inacabado. Contudo, segundo a autora, já há princípios teóricos e metodológicos bem ajustados, um bom exemplo é de considerar relevantes as condições de produção na constituição da linguagem, influências que determinam o que dizer, como dizer, e quais sentidos atribuir àquilo que está sendo dito. Portanto, pode-se dizer também que a AD “[...] é um conjunto de teorias sobre as restrições que o discurso sofre” (POSSENTI, 2009, p. 11).

Após esse breve esboço da relação entre analise do discurso a e construção da linguagem, mergulhar-se-á na discussão sobre texto e leitura. Para a Análise do Discurso, o texto não é só uma soma de frases, “[...] o texto é o lugar, o centro comum que se faz no processo de interação entre falante, autor e leitor” (Idem, p.180), mas como é possível um conflito entre os interlocutores, seus domínios são parciais. A unidade de seus domínios é a unidade do texto. Assim, essa totalidade do texto não pode ser encontrada nos interlocutores, mas no espaço discursivo dos mesmos. Segundo Orlandi (2001), no que concerne às condições de produção de um texto, pode-se considerá-lo um produto incompleto e inacabado, tendo em vista suas relações com a circunstância de produção e com outros textos. Nessa perspectiva, o texto seria um produto com sentido indeterminado ao chegar ao leitor, ganharia a determinação individual do mesmo, e se tornaria indeterminado novamente, rumo a novas significações.

Se o texto é o espaço de interação entre os interlocutores, é válido ressaltar que toda leitura depende da relação entre leitor, texto e autor. Mais ainda, a leitura é seletiva, e por isso, existem vários modos de fazê-la. Por isso, ORLANDI (2001) corrobora que sem o contexto e a relação do leitor com a situação, ou seja, sem os elementos que unificam o processo de leitura, que a configuram, não há o distanciamento necessário para a leitura, e o leitor perde o acesso ao sentido.

Todo sujeito da linguagem, no momento de sua construção discursiva é interpelado por uma ou mais ideologias. “A ideologia aparece como um processo de comunicação implícito que determina as práticas (discursiva e outras) dos indivíduos constituídos em sujeitos” (Idem, p.189). Por conta disso, no momento da leitura “há uma relação de interação que regula as possibilidades de leitura” (Idem), relações com o contexto sócio-histórico, com a conjuntura social da qual o sujeito faz parte e, também, com as circunstâncias atuais de suas leituras. Todas essas condições configuram o processo de leitura. Portanto, para a Análise do Discurso, a leitura é produzida, “é o momento crítico da constituição do texto” (Idem, p.193). Ainda sobre a leitura do texto, POSSENTI (2009, p. 13) traz uma consideração importante: “[...] a leitura não é a leitura de um texto enquanto texto, mas enquanto discurso, isto é, na medida em que é remetido a suas condições, principalmente institucionais de produção”. Todos esses fatores devem ser o suporte à interpretação de um texto.

Em se falando de leitura, deve-se citar a existência de dois tipos de possibilidades de fazê-la. A primeira, leitura parafrástica, consiste na mera repetição do que está explícito no enunciado, é o que Orlandi (2001, p.200) denomina de reconhecimento (reprodução) do sentido dado pelo autor. A segunda forma de leitura é a polissêmica, em que o sujeito-leitor atribui ao texto múltiplos sentidos, ou seja, é possível um nível de interferência textual muito mais elevado. Visto que se pode diferenciar os tipos de leitura, é válido acrescentar que essa atribuição de sentidos às coisas também é um processo histórico, e que sua produção é resultado “[...] de um consenso entre indivíduos socialmente organizados no curso de um processo de interação” (VOLOSHINOV apud ORLANDI, p. 102), assim, a justificação para que isto ou aquilo possua determinado sentido naturalmente, é construída pela ideologia.

A função do leitor no discurso do texto - sua leitura – é, impreterivelmente, a mais importante entre a dos constituintes da função enunciativa. Essa função também é determinada, o efeito do texto no leitor “[...] é determinado historicamente pela relação do sujeito com a ordem social” (ORLANDI, p.104). Esses pressupostos que delimitam o espaço sobre os quais se deve e se pode pisar na reorganização do sentido do discurso anulam a falsa ilusão da onipotência do sujeito e também da onipotência do sentido. Melhor dizendo, ninguém é dono de discurso algum, muito menos poderá atribuir um sentido uno a ele. Toda enunciação discursiva é resultado de emaranhados de outros textos – os interdiscursos - que repletos de cargas ideológicas distintas e historicamente elaboradas e reelaboradas, definem, ajustam e constituem a enunciação do eu-aqui-agora.

Visto que existem diversos fatores que influenciam e/ou determinam as leituras, faz-se necessário explicitar que o texto em relação à leitura possui diversos espaços, esses espaços são decorrentes da relação do leitor com a história do texto e também da historicidade do leitor. Simplificando, o texto pode ser lido por sujeitos que estão em diferentes posições e, por isso, pode ganhar múltiplos significados de cada um. Essa capacidade de atribuir significado, pode ser chamada de leitura.

O viés pelo qual o leitor enxerga o texto denomina a capacidade de leitura dele. A Análise do Discurso defende que o leitor mais que interpretar um texto, deve compreendê-lo. Não apenas captar o sentido do dito, mas “[...] saber que o sentido poderia ser outro” (Idem, p. 116), pois “O sujeito-leitor que se relaciona criticamente com sua posição, que a problematiza, explicitando as condições de produção da sua leitura, compreende” (Idem). Ou seja, aquele que defende ou faz parte de grupos estigmatizados faria sua leitura sobre o preconceito reconhecendo o lugar do qual ele fala e o porquê daquele discurso, sem deixar de enxergar qualquer equívoco ou exagero no seu discurso de defesa a esses grupos.

Após esse percurso no campo do texto e do discurso, as discussões posteriores se constituirão em explanar algumas ideias presentes nos textos de editoriais da ALB e contrapor as proposições defendidas pelas ideias tradicionais sobre leitura. Citando Maingueneau, POSSENTI (2009, p. 24) corrobora que “[...] uma das características fundamentais de cada discurso é ele derivar de um interdiscurso. Ou seja, para cada discurso, há um outro (pelo menos virtual), com o qual, entre outras coisas, ele mantém uma relação polêmica”, a partir disso vê-se que existe um conflito de concepções acerca da leitura e de sua prática.

São muitas as ideias defendidas tanto por um lado quanto por outro. Contudo, o texto abordará agora apenas algumas proposições. Uma delas é a tese defendida pela ALB (Associação Brasileira de Leitura) de que não se conhece a realidade de leitura do brasileiro e que a situação é mais positiva do que se imagina, posição esta que Possenti não corrobora. O discurso da Associação está pautado na ideia de que ler é ler, independentemente de qual o estilo ou prestígio do texto lido, haja vista que todo texto é uma mercadoria, não tem o poder de melhorar ou piorar a conduta moral e social de quaisquer sujeitos. Desse modo, pode-se extrair sentido de qualquer espécie de texto, mesmo que não sejam os sentidos já consagrados nas obras canonizadas, pois nenhuma obra é melhor do que outra. Esse pensamento é “a negação da qualidade intrínseca de determinada obra” (POSSENTI, 2009, p. 29-30).

Essa perspectiva abre um leque de igualdade entre os textos e anula qualquer influência, negativa ou positiva, da obra em quem a lê. Dessa forma, as revistas de horóscopo, os livros de autoajuda, os gibis, as revistas de fofoca e outros produtos se igualam aos cânones e entram na lista de textos que devem ser relacionados e validados como objeto de leitura dos brasileiros. Essa quebra de hierarquia faz com que o porcentual de leitores e leituras aumente significativamente, desmontando a tese de que o brasileiro lê muito pouco.

Em contrapartida, o discurso tradicional aborda que, fazendo uma comparação entre a quantidade de editoras, livrarias e bibliotecas, como também o número de textos clássicos lidos pelos universitários no Brasil e no exterior, o brasileiro não lê. Segundo esta concepção não é qualquer texto que deve ser lido, tampouco poderia se chamar de leitura uma leitura mal feita – “aquela em que os leitores não captariam [os sentidos], por inexperiência, por inaptidão decorrente da idade, da história prévia etc.” – (Idem, p. 26). Considera, ainda, que existem obras intrinsecamente melhores do que outras. Por esta ótica, retomam-se os níveis de leitura e a hierarquia entre as obras. Elas funcionariam como instrumento de poder, e sua leitura também. Os textos ganham a função de causar efeito no leitor, e assim poderiam transformar o sujeito leitor em alguém melhor ou pior. Para isso, a visão tradicionalista explicita que existem obras intrinsecamente mais originais e melhores.

Diante do exposto, conclui-se ser possível que seja verdade que, ainda, o brasileiro leia muito pouco, porém, é preciso considerar os diferentes tipos de leituras já praticadas por ele. O problema da falta de hábito de leitura não vai ser resolvido quando o conflito entre tradicionalistas e a ALB for interrompido, mas quando se aceitar que esse é um problema causado pela inexistência de políticas públicas que incentivem a leitura livre. Não há incentivo à leitura que funcione, se os preços dos livros não diminuírem ou as bibliotecas não obtiverem um maior número de obras em suas prateleiras, até porque se lê aquilo a que se tem acesso. Em alguns casos, a existência de uma simples biblioteca já seria de grande ajuda. No que concerne ao valor da obra e seus possíveis efeitos no leitor, isso é variável de acordo com a particularidade de cada um. Não podemos renegar o valor do cânone, tampouco insistir que o texto não canônico não pode transformar o homem, os textos sagrados estão aí para nos fazer refletir acerca disso. É coerente, assim como faz a AD, eximir-se de prescrever a leitura adequada. Contudo, independente do que está sendo lido, que cada leitura fomente a busca de mais e diferentes leituras.

REFERÊNCIAS:

ORLANDI, Eni Puccinelli. Uma questão da leitura: A noção de sujeito e identidade do leitor. In.. A linguagem e seu funcionamento: As formas de discurso. 4 ed.. Campinas, SP: Pontes, 2001, p. 177-191.

ORLANDI, Eni Puccinelli. A produção da leitura e suas concepções. In.. A linguagem e seu funcionamento: As formas de discurso. 4 ed.. Campinas, SP: Pontes, 2001, p. 193-203.

ORLANDI, Eni Puccinelli. O inteligível, o interpretável e o compreensível. In.. Discurso e Leitura. 4 ed.. Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual da Campinas, 2001, p. 101-117.

POSSENTI, Sírio. Relações entre análise do discurso e leitura. In.. Questões para analistas do discurso. São Paulo: Parábola, 2009, p. 9-19.

POSSENTI, Sírio. O discurso a respeito da leitura da ALB. In.. Questões para analistas do discurso. São Paulo: Parábola, 2009, p. 21-38.

Allisson Nato
Enviado por Allisson Nato em 26/04/2011
Código do texto: T2932815
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