“RESPOSTA”: No meio do conto havia outros tantos

Não se nasce mulher, torna-se mulher.

Simone de Beauvoir

Este trabalho tem por finalidade discorrer acerca dos discursos (considerar-se-á aqui a visão apresentada por Maingueneau* ), interdiscursos, ideologia, formações discursivas e os não-ditos engendrados no conto “Resposta”, da escritora Helena Parente Cunha, que compõe o livro Cem mentiras de verdade, publicado em 1985. Para tal, será utilizado como aporte teórico a Teoria da Análise do Discurso de Linha Francesa, perpassando por algumas considerações sobre gênero.

Helena Parente Cunha nasceu em 1930 na cidade de Salvador – BA. É poeta, ficcionista, escritora, professora universitária, pesquisadora, ensaísta, crítica literária e detentora de alguns prêmios literários. Autora de obras como A Mulher no Espelho e As Doze Cores do Vermelho, Cunha destaca-se ao ser uma das principais representantes da escrita feminina na literatura brasileira, tematizando questões referentes ao papel da mulher na sociedade e problematizando como tal posição foi construída e/ou institucionalizada ao longo da história.

O conto Resposta é um texto no qual se trava um diálogo entre uma mulher de 35 anos e suas amigas. Nele, a personagem principal mostra-se extremamente alienada à ideologia patriarcal, enquanto é incitada por suas amigas a liberar-se das reservas e entregar-se ao prazer sexual. O medo se reflete através da educação recebida, bem como do discurso cristão no qual a mulher é impedida de exercer qualquer atividade sexual antes do casamento. Essa opressão advém do que Foucault** classifica como “o poder disciplinar”, que é “[...] um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor” (apud SOUZA, 2009, p.16).

Antes de iniciar a análise do texto faz-se necessário discutir as condições de produção do conto, haja vista que “[...] é impossível analisar um discurso como um texto, isto é, como uma sequência linguística fechada em si mesma, mas é necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção [...]” (PÊCHEUX, 1969, apud POSSENTI, 2009, p. 72). Esse texto foi escrito em 1985, basicamente quinze anos após a explosão da revolução cultural da qual participaram grupos marcados pela discriminação alteritária (as mulheres, os homossexuais, entre outros). Segundo Cunha (1999, p.17) esse movimento subverteu costumes, valores, modos de pensar e ver o mundo na pós - modernidade. Nessa época, o Brasil vivia um período de ditadura e as novas ideias que chegavam da Europa fomentavam o desejo de resistência ao modelo político e social existente. Como resposta a essa prisão ideológica utilizavam o slogan “é proibido proibir”. No caso da mulher, a reflexão sobre os motivos que levaram as representantes desse gênero a estarem nessas condições de submissão e/ou inferioridade em relação ao homem foram questionados pela literatura feminina.

Após esse breve esboço histórico, segue a análise:

“As amigas perguntavam. Por que não dá de uma vez? Ela resistia. Perguntada. Trinta e cinco anos. A educação. A moça tem que se conservar pura até o casamento. Seja comportada.”

Através desse fragmento é perceptível, a priori, que a linguagem utilizada no trecho Por que não dá de uma vez? demonstra inadequação enunciativa da frase, por se tratar de uma voz feminina. A aplicação do verbo dá para caracterizar a relação sexual suscita a uma ideia de apropriação discursiva, ou melhor, a uma retomada de discursos – os interdiscursos – de sujeitos (os homens) que se encontram em outra posição social. Contudo, vale salientar que essa inapropriação resulta da institucionalização do que é permitido (no dizer e no fazer) à mulher.

"Ela resistia. Perguntada". Pode-se classificar essa resistência como efeito do que Bourdieu*** chama de força simbólica, ou seja, “[...] uma forma de poder que se exerce sobre os corpos, diretamente, e como que por magia, sem qualquer coação física [...]” (apud SOUZA, 2009, p.18). Correlacionando à análise do discurso, é possível inferir que essa postura conservadora é causada pelas formações discursivas dessa personagem, que limitam seu dizer e seu fazer, pois “Durante toda vida, o corpo feminino condicion[ou]-se a seguir as posturas adquiridas em cada regime controlador de comportamento” (SOUZA, 2009, p. 17). A ideologia engendrada em seu inconsciente é patriarcal e egocêntrica, portanto seu discurso se submete aos códigos estabelecidos por ela.

Outro interdiscurso que está presente na personagem principal é o discurso religioso. Além de refletir em seu discurso a doutrina que, possivelmente, recebera dos pais no que concerne a aquisição de uma educação severa, o ideário cristão de pureza permanece controlando-a: A educação. A moça tem que se conservar pura até o casamento. Seja comportada. Acerca disso Mendonça (1991) destaca, baseada nas ideias de Jung**** , que isso acontece porque “O inconsciente registraria subliminarmente alguns acontecimentos da vivência do ser. Em momentos de grande crise, ou num processo de intensa reflexão, estes acontecimentos podem aflorar à superfície da consciência, revelando sua verdadeira importância emocional” (p.22). Ainda se pode comprovar essa vinculação discursiva ao citar o que é exposto por Orlandi, quando afirma que no processo de comunicação, nesse caso exercido pela mulher, “A ideologia aparece como um processo [...] implícito que determina as práticas (discursivas e outras) dos indivíduos constituídos em sujeitos”. (2001, p.188).

“Por que você não trepa com ele? Seja recatada. Essas coisas feias e baixas. Por que você é tão antiquada? Careta? Quadrada? Perguntadeiras.”

Neste trecho verifica-se o confronto entre dois discursos. As vozes de dois sujeitos estão em conflito direto, a alternância da linguagem comprova isso. O primeiro, essencialmente transgressor, sugere a ruptura da rígida hierarquia de valores e é permeado, mais uma vez, por uma linguagem que não é de referência feminina, pois “[...] a apropriação da linguagem é um ato social [...] há uma forma social dessa apropriação” (ORLANDI, 2001, p.188), e nesse contexto não é conferido ao sujeito feminino o uso desse léxico: Por que você não trepa com ele? Coelho explicita que “[...] é importante notar que esse ‘interdito’ (que transformou o sexo em tabu) foi consagrado pela Igreja (e pela sociedade), no século XIV” (1999, p.10). O segundo é representado pela formação discursiva falocêntrica e pela ideologia patriarcal: “Seja recatada [...] essas coisas feias e baixas.”, responsável pela hesitação da personagem em escapar do que Simone de Beauvoir***** denomina de “destino de mulher” (apud XAVIER, 1991, p.12), submissa e distante do sonho de liberdade. Essa variação bipolar repercute no conflito existencial que a personagem sofre ao longo da narrativa.

“Desejo impuro? Por que não podia? Se perguntecia. Cio. Ardia. Um dia. Deu. Volúpia? Anestesia.”

Simone de Beauvoir afirma que “[...] o pleno desabrochar sexual é na mulher bastante tardio; é por volta de 35 anos que ela atinge seu apogeu” (apud SOUZA, 2009, p.72). Coincidentemente, a personagem da narrativa possui a mesma idade citada por Beauvoir, e é nesse estágio que ocorre um questionamento acerca das proibições as quais sempre sofrera, eclodindo, posteriormente, em sua rendição ao instinto sexual: Cio. Ardia. Um dia. Deu. Neste momento, a personagem permite que o id (prazer) se sobressaia aos preceitos institucionalizados pelo superego (ideologia formadora) e ganhe, mesmo que momentaneamente, a briga com seu ego (conhecimento de si mesma).

Após o momento de êxtase que conhecera, há um recobramento de consciência: No crescendo da vertigem, se retomou. Recobrada. Uma moça? Era tarde. Atravessada, já tinha sido transposta. Perdida. Neste momento, percebe-se que logo após a personagem ter alcançado um espaço de autorrealização, é acometida por um sentimento de culpa. Ocorre o resultado de um processo descrito por Benedito Nunes****** , no qual a personagem passa, a priori, por uma “tensão conflitiva” entre sua ideologia formadora e outros discursos transgressores a ela, adiante se tem o “clímax”, a entrega ao prazer, seguido do “anticlímax”, que seria o sentimento de remorso (apud SOUZA, 2009, p. 21). Esse julgo provém de um sufocamento provocado pela carga ideológica sobre a qual a personagem ainda estava submetida.

“As amigas, como foi? Gostou? não gostou? Pergunteirosas. Decepção. Arrependimento. Remorso. E agora? Uma puta? Como encarar a família? Perguntâncias. Não podia. Vergonha. Desespero. A honra. Nunca mais. As amigas. Visitas constantes. O hospital psiquiátrico. Resposta.”

Souza (2009, p.17) afirma que “As mulheres já incutiram em si a inferioridade disseminada desde seus nascimentos [...]”, a partir dessa proposição pode-se inferir que o sujeito representado pela mulher ainda está atrelado à corrente ideológica patriarcal, que não permite qualquer subversão moral e/ou comportamental. Dada sua posição inferior junto aos discursos dominantes, o escape momentâneo aos valores falocêntricos causou uma reação na hierarquia discursiva e ideológica, fomentando no sentimento de vergonha. A partir daí as formações discursivas passam a funcionar como órgãos de punição, pois nas palavras de Xavier (1991) “Sair da imanência para a transcendência implica, muitas vezes, uma mutilação.” Todos os princípios que foram transgredidos voltam à tona para transformar a crise de identidade em loucura. O destino concebido a personagem representa a incapacidade do sujeito em se desvencilhar de significados construídos historicamente e estabelecidos socialmente, nos e pelos discursos.

O texto demonstra que o sujeito do discurso representado pela figura feminina passou por um período de crise identitária no momento que se viu entre duas correntes ideológicas opostas. Esse período de reflexão sobre sua condição social é bem marcado por Helena Parente Cunha, haja vista que a escritora transcreve acerca de uma condição a qual ela também está inserida: a de sexo inferior. Quando a personagem é liberada ao id, transgride todo um conjunto de normas historicamente construídas pelos homens. Essa fuga culmina na apreensão de um remorso advindo da pressão social e ideológica. Os não ditos presentes nos trechos: “Perdida [...] Decepção [...] Arrependimento [...] Remorso [...] Uma puta? [...] A honra. Nunca mais [...] O hospital psiquiátrico. Resposta.”, demonstram a carga moral que as formações discursivas engendram nos sujeitos. Quando a mulher do conto transgride valores impostos, os nãos ditos aparecem para confirmar que a transgressão já fora concretizada e não há como escapar ilesa das críticas e da classificação estereotipada de sujeito inferior e vulgar. Por isso, Fiorin corrobora que “Embora haja, numa formação social, tantas visões de mundo quantas forem as classes sociais, a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante” (2005, p.31).

*Maingueneau apresenta o discurso como uma organização que se constitui além da frase, sofrendo orientações temporais e, também, regidos de uma ação. Sobretudo, o discurso é algo inscrito numa instituição de fala, por isso é dominado por normas.

**FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Trad. Raquel Ramalhete. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

***BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Marilena Helena Kühner. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

****JUNG, Carl G. et alii. O Homem e seus Símbolos. 2ª ed.. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.

*****BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: II a experiência vivida. Trad. Sérgio Milliet. 2. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.

******NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1995.

REFERÊNCIAS:

COELHO, Nelly. O Desafio ao Cânone: consciência histórica versus discurso em crise. In: CUNHA, Helena P. (Org.). Desafiando o Cânone: Aspectos da Literatura de autoria feminina na prosa e na poesia (anos70/80). Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 1999, p. 9-14.

CUNHA, Helena P.. Desafiando o Desafio: algumas considerações introdutórias. In:__________. (Org.). Desafiando o Cânone: Aspectos da Literatura de autoria feminina na prosa e na poesia (anos 70/80). Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 1999, p. 15-20.

FIORIN, José L. Que é ideologia?. In: Linguagem e Ideologia. 7ª ed.. São Paulo: Ática, 2001, p. 26-31.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Uma questão de Leitura: A noção de sujeito e a identidade do leitor. In: A linguagem e seu funcionamento: As formas do discurso. 4ª ed.. Campinas – SP: Pontes, 2001, p. 177-187.

POSSENTI, Sírio. Observações esparsas sobre discurso e texto. In: Questões para analistas do discurso. São Paulo: Parábola, 2009, p. 71-80.

SOUZA, Wanessa Z. de. Representações da Mulher em Obras de Helena Parente Cunha, Lygia Fagundes Teles e Marina Colasanti. 96 folhas. Dissertação (mestrado). UFRJ/FL Programa de Pós – graduação em Letras Vernáculas. Rio de Janeiro, 2009. Disponível em< http://www.letras.ufrj.br/posverna/mestrado/SouzaWZ.pdf> Acesso em 16-12-2010.

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso, Enunciado, Texto. In:_________. Análise de Texto de Comunicação. 4ª ed.. São Paulo: Cortez, 2005. p. 51–57.

MENDONÇA, Maria H.. A Busca da identidade na Ficção Feminina Contemporânea. In: XAVIER, Elódia (Org.). Tudo no Feminino: a mulher e a narrativa brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991, p. 19–39.

XAVIER, Elódia. Reflexões Sobre a Narrativa de Autoria Feminina. In:____________. (Org.) Tudo no Feminino: a mulher e a narrativa brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991, p.9–16.

Allisson Nato
Enviado por Allisson Nato em 26/04/2011
Reeditado em 25/11/2011
Código do texto: T2932878
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