A Vesícula

Vesícula

Tudo começou com aquele lindo e atraente torresmo, alias não começou, apenas se definiu.

Senti que o torresmo me olhava com um olhar penetrante me pedindo para comê-lo, e eu magro por natureza e gordo por opção, não relutei, comi-o, avidamente, crocante e gorduroso, como devem ser os melhores torresmos.

Mais tarde, depois de ter um pacote no estomago, que não largava vaga a outra coisa, veio a dor, uma dor em forma de cólica, que hora trocava de lugar entre a barriga e as costas.

Antes não sabia, que certas dores tem essas nuances, simplesmente trocam de lugar, talvez para nos deixar mais loucos ainda.

Não houve outra solução, chamamos o médico, que somente com os relatos do incomodo, resolveu atirar direto na dor.

Aquele coquetel de Buscopan / Plasil e Glicose, foi aplicado direto na veia, e o alivio imediato.

Passados alguns dias, exatos 10, quarta feira em São Paulo, dia da famosa e sagrada feijoada de boteco, fomos eu e dois amigos fazer a fézinha na Mega Sena acumulada e como aquele começo de tarde estava propicio, devido ao frio, que tal uma bela feijoada, borbulhante, bem gorda, com pedaços de toucinho, beiços e costelinhas, tudo que o gordo gosta e que faz muito mal, evidentemente, acompanhada de uma “coca diet”.

Essa se revelou fatal.

Horas intermináveis de tentativas infrutiferas de diluir aquele material, e o estomago mandou o sinal: Incomodo, cólica e dor, muita dor.

Como na crise anterior a receita do coquetel dera certo, me apressei em dizer ao médico de plantão, que repetisse a dose,ele atendeu, e nada.

Desconfiado, ainda no hospital, me mandou fazer um eletro, e bota fio de lá, fio de cá, numa noite fria, eu semi nu com fios pelo corpo, uma dor que não passava, e ainda aquele frio de “renguear cusco” ( termo gaúcho que quer dizer “ cachorro tremulo e encolhido”).

Batia o queixo e os joelhos, não sei se de frio ou de medo, ainda bem que a desconfiança do jovem doutor não vingou, o coração estava OK.

Foi por assim dizer uma noite à esquecer.

Dia seguinte, médico especialista, mil exames, a dor ali, irredutível e tira sangue pra isso , e tira sangue pra aquilo, as desconfianças iam dando vez a uma análise mais consistente.

A desconfiança médica era que a Vesícula* estava dando um sinal.

*O que o que é vesícula biliar?

A vesícula biliar é um orgão de formato sacular (bolsa), localizada sob o fígado e que se comunica com o canal hepático principal (a via biliar comum) por um canal próprio chamado ducto cístico. Na vesícula biliar, a bile que é produzida no fígado, se concentra no intervalo das refeições sendo liberada para o duodeno logo após a ingestão do alimento, principalmente as gorduras

Dois dias depois, já na sexta feira, vem a confirmação do problema, dado de forma a não restar dúvidas: Colecistite Aguda **

**A colecistite aguda pode regredir ou não. Quando for persistente, vai se comportar como um abscesso local. Pode romper, ficando bloqueada sob o fígado ou romper para dentro do abdômen provocando peritonite aguda. Quando um cálculo sai da vesícula biliar e progride para canal hepático obstruindo esse canal, a bile não passa para o intestino e reflui através das células hepáticas para a corrente circulatória. A bilirrubina refluída para o sangue provoca uma cor amarelada típica de pele chamada de icterícia. Essa bile retida pode infectar, provocando doença grave designada colangite aguda.

Muito bem,pelo menos agora sei o nome do meu problema, mas e daí?Quem sabe uns comprimidos e esta infecção vai embora.

Questionei o médico acerca do tratamento, mas a resposta veio em tom de ordem, afinal era fim de tarde, e o encontro foi marcado para estarmos no hospital nas próximas duas horas, teríamos que nos preparar para a cirurgia no dia seguinte bem cedo.

Meu Deus, pensei, uma cirurgia?

-Doutor, não tem outro jeito?

-Não, aproveitemos que seu estado geral é ótimo,se não fizer agora terá que fazer mais tarde, então....???

Tudo bem, concordei, mesmo sem saber os procedimentos, que pela calma do médico pareciam simples e corriqueiros.

Na mesma noite, lá estava eu com alguns familiares, alojado em um quarto confortável, esperando pelo dia seguinte, sem saber exatamente os procedimentos, mesmo porque de hospital mantinha uma significativa distância, somente indo por lá em circunstâncias de visita a familiares enfermos, ou nos nascimentos dos meus filhos.

Ainda na véspera, do que seria uma novidade não esperada, começou um entra e sai de enfermeiros, para examinar a pressão, temperatura e não sei porque a colocação de um incômodo frasco de soro, que ficava pingando no tubinho acima de minha cabeça e sendo injetado na veia do meu braço direito.

Notei que nesse procedimento, algumas drogas também vieram junto ao soro, talvez para me fazer dormir e tirar a dor, que mesmo aplacada não cedera totalmente.

Bobagem, passei a noite em claro, tentando entender como seriam os próximos dias.

Sábado de manhã, após jejuar por três dias, e passar a noite acordado ainda tentava me manter com o moral elevado, embora por dentro um certo pavor me atormentava.

A porta se abre e entram, dois enfermeiros empurrando uma maca com rodas, e entre sorrisos me convidaram a vestir uma ”batinha” verde, pelado totalmente por baixo.Respirei fundo e pensei, é agora e não tem mais jeito.

A sensação de cortar os corredores olhando as luzes do teto que passam, uma apagada outra acessa, não me saem da memória, aquilo até parecia com os filmes de terror que havia visto.

Chegando na sala de cirurgia, outra sensação estranha, a de conhecer pessoas na posição de deitado, olhando pra cima, na altura das cinturas, e todas eram rigorosamente iguais, já que trajavam a mesma roupa verde claro, gorrinhos, máscaras e luvas.

Reparei bem, e não havia ninguém de asas, nem de chifrinhos, menos mal.

Da posição que me encontrava, sob as luzes acima da cabeça eram somente vultos, que se mexiam ligando equipamentos me colocando agulhas, uma máscara cobrindo a boca e o nariz, não me lembro de mais nada, o sono é ótimo.

Quatro horas depois, como num passe de mágica, fui acordando já ladeado pela minha mulher e dois filhos, uma sede insana e uma lembrança na barriga, lembrando uma avenida de mais de um palmo.

Bem a recuperação vai ser lenta, como lento foi meu descaso com a saúde.

Menos mal, que agora pelo menos fiquei mais informado sobre o meu próprio corpo, a Internet me ajudou bastante, como aqui está comprovado, das importância ou não de alguns órgãos.

Eu que prezava tanto a Vesícula e tinha por ela uma verdadeira estima, constatei sua total inoperância e desimportância, comparável a um assessor, que somente faz guardar os produtos produzidos pelo verdadeiro executivo, o Fígado.

O grave deste processo, é que enquanto em Brasília, os ministros se livram dos assessores incômodos e a vida continua, a imprensa esquece e a população perdoa, no caso do corpo humano é diferente, a exclusão deste assessor consegue paralisar todo o governo por pelo menos um mês.

Lune Verg
Enviado por Lune Verg em 30/07/2007
Código do texto: T585676