A menina do outro lado: mistério e dualidade

Quem gosta de terror e mistério não se decepcionará ao ler A menina do outro lado, mangá lançado em 2016 pela Darkside, de autoria do mangaká Nagabe, que muito mais do que contar uma boa história de terror, aborda temas como preconceito, solidão, luta pela sobrevivência e o amor como única forma de resistir às adversidades num mundo hostil onde os diferentes são desprezados e perseguidos. A menina do outro lado se passa em um mundo que divide as pessoas entre os que pertencem ao mundo “de dentro” e os que vivem no mundo “de fora”, sendo estes últimos considerados uma ameaça à segurança dos que moram no mundo de dentro. Acredita-se que há uma maldição pairando entre os habitantes e quem for apenas suspeito deve ser morto para que ela não se espalhe.

No meio deste mundo onde o medo e o preconceito imperam, Shiva, uma doce e inocente menina, vive do lado de fora em um ambiente hostil tendo como único protetor uma estranha criatura de aparência demoníaca a quem ela chama de Sensei*, que assume o papel de pai e ao mesmo tempo de mentor. Ela não pode tocá-lo ou será amaldiçoada. Shiva, de forma misteriosa, perdeu-se de sua tia e está à sua espera, acreditando que a mesma logo irá busca-la. Entretanto o Sensei, que sabe de coisas que não pode revelar, teme que a verdade possa ser cruel demais para uma menina que não é capaz de compreender inteiramente toda a tragédia que a cerca. De alguma maneira, o Sensei parece estar envolvido com a maldição que assolou a vila e tem assombrado os que vivem do lado de dentro e sabe como Shiva se perdeu de sua tia, tendo fortes pressentimentos de que a menina nunca voltará a vê-la.

Shiva, com a inocência e a curiosidade próprias das crianças, quer explorar o mundo e buscar sua tia. Sua relação com o Sensei é muito complicada: ele é o único que pode protege-la e guia-la no meio do mundo adverso em que ela se encontra, mas também pode lhe transmitir a maldição que pode transformá-la num ser monstruoso como ele. Ela não o teme, apesar de sua aparência e sente por ele enorme carinho e respeito. O Sensei é bastante paciente com Shiva: brinca com ela de festa do chá, lê para ela o livro de histórias deixado por sua tia e a protege de qualquer perigo, chegando a arriscar sua vida para que nada a fira.

O mangá é todo marcado pelo contraste entre claro e escuro. Enquanto Shiva é clara e tem cabelos brancos, o Sensei é escuro. Isto dá uma perfeita ideia da dualidade presente em A menina do outro lado, que apresenta o contraste entre a luz e as trevas, os de “dentro” e os de “fora”, o bem e o mal, “nós” e os “outros.” Numa cena bastante tocante do mangá, Shiva pede que ele leia para ela o livro dado por sua tia e ele conta a história do deus da luz e do deus das trevas, que resultou na divisão entre os que vivem do lado externo e do lado interno e da maldição. Percebe-se aí uma semelhança entre os deuses do bem e do mal da mitologia persa**, que viveriam em eterna batalha até que chegaria o dia no qual o bem finalmente venceria o mal.

O nome da menina, Shiva, é bastante simbólico. Sabe-se que é o nome do deus hindu da destruição***. Vale lembrar que, para os hindus, a destruição não possui conotação negativa, sendo necessária para o equilíbrio do universo. Destruindo-se o velho, pode-se criar algo novo, dando-se início a novos tempos. Desta forma, a inocente Shiva poderia simbolizar a promessa de algo novo, do fim do velho para que o universo se renove.

Para concluir, podemos dizer que A menina do outro lado, com sua atmosfera de mistérios que vão pouco a pouco sendo desvendados, é também uma história de esperança em tempos mais felizes. Shiva simboliza perfeitamente tanto a inocência quanto a perseverança. Já o Sensei, que sabe de muitas coisas que não pode revelar, é mais cético. Porém, é tocante ver sua dedicação em proteger Shiva contra os perigos que podem ameaça-la. Enquanto o Sensei é o conhecimento, Shiva é a ignorância e, neste universo, a ignorância pode ser uma bênção. Saber demais poderia diminuir as esperanças de qualquer um.

Desta forma, concluímos que este é um mangá bastante recomendável não apenas por conter uma atmosfera de mistério sinistro como também por discutir temas como medo, solidão, preconceito e esperança, que sempre nos despertarão sensações e nos farão refletir sobre a existência.

*Sensei quer dizer mestre em japonês

** O zoroastrismo persa acreditava em dois deuses: Ahura Mazda deus do bem e Arimã, deus do mal. Ambos viveriam em guerra até que, um dia, o bem derrotaria definitivamente o mal.

***Shiva é um dos principais deuses hindus. Brahma é o que cria, Vishnu, o que preserva e Shiva, o que destrói. Após a destruição, ocorre nova criação.