O soneto da fidelidade, de Vinícius de Moraes

O soneto da fidelidade, de Vinícius de Moraes

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Na teoria geral do direito há uma discussão interminável sobre a manutenção, ou não, do que é pactuado e ajustado em tratados (no direito público) ou nos contratos (no direito privado). Deve-se cumprir, sempre, o que se ajustou? Com referência ao direito romano a situação é descrita nos termos de duas fórmulas.

“Pacta sunt servanda”, isto é, os pactos devem ser cumpridos, qualifica a obrigatoriedade do cumprimento do que foi pactuado, não importando o que ocorra depois do que foi ajustado. Em contrapartida, a cláusula “rebus sic stantibus”, que significa que os pactos devem ser cumpridos, desde que mantidas as condições originárias, estando as coisas como estavam ao momento do ajuste. Nesse último caso, a obrigação do cumprimento das cláusulas contratuais não é absoluta. É essa a discussão que justifica a chamada teoria da imprevisão ou o princípio da revisão contratual.

A questão é apropriada para discussão no tema do casamento. Por exemplo, para a Igreja Católica, o pacto matrimonial é um consórcio entre homem e mulher, para toda a vida. A indissolubilidade do matrimônio cristão recebe firmeza especial, porque é um sacramento. É uma aliança irrevogável. A ordem jurídica secular (não religiosa) refuta essas premissas.

Ainda no distante ano de 1943 o escritor Sérgio Milliet defendia o divórcio e argumentava que o casamento indissolúvel existiria para uma sociedade estável, de estrutura patriarcal. O mundo mudou, e a família mudou com ele. O regime matrimonial permanecia o mesmo. Tinha que mudar. Não se pode confundir o efeito com a causa; os novos tipos de família são o efeito, e não a causa da mudança do mundo. Mais. Ainda na ordem secular (não religiosa) os tribunais entendem hoje que a união matrimonial não é necessariamente uma união entre um homem e uma mulher: ocorre entre duas pessoas. O grande lutador pelo divórcio no Brasil foi o senador Nelson Carneiro. Nada dura para sempre, e os contratos devem traduzir essa incerteza.

O assunto foi tratado de forma definitiva, e poética, por Vinicius de Moraes. Refiro-me ao “Soneto da Fidelidade”. O soneto é uma composição poética curta. Conta com 14 versos. O último verso deve fechar o poema com encanto ou surpresa. Vinicius deixou-nos um conjunto expressivo de sonetos, a exemplo dos soneto do amor perdido, do soneto a Portinari, do soneto da mulher ao sol, do soneto da despedida, do soneto da devoção, do soneto da madrugada, do soneto da intimidade, do soneto da separação, do soneto do amor como um rio, entre tantos outros.

O último verso de um soneto é denominado de “chave de ouro”. É nessa passagem que o poeta carrega a carga simbólica de uma sensibilidade peculiar. No último terceto do Soneto à Fidelidade Vinicius fecha o poema com três versos superlativamente inspirados: “Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”.

Conta-nos José Castello na encantadora e atraente biografia que escreveu sobre Vinicius, “O Poeta da Paixão”, que a Cia. das Letras publicou, que o Soneto da Fidelidade foi redigido em 1939, quando Vinicius e Tati, então sua esposa, estavam no Estoril, em Portugal, aguardando um navio que os levaria ao Brasil. O soneto foi dedicado a Tati. Tati, cujo nome era Beatriz Azevedo de Mello, era cunhada de Carlos Leão, arquiteto e pintor, um grande amigo de Portinari. Vinicius e Tati se conheceram na casa de Carlos Leão, quando Vinicius lá esteve na companhia do poeta Murilo Mendes. Foi uma paixão delirante, como ao que parece foram todas as paixões de Vinicius, por isso mesmo lembrado como o poeta da paixão.

Vinicius e Tati estavam em Paris quando souberam do início da segunda guerra mundial. Conta-nos José Castello, que o casal partiu para Portugal, atravessaram a Espanha com dificuldade e, em Lisboa, encontraram Oswald de Andrade e a esposa, Bárbara, que também tentavam regressar para o Brasil. Foram 45 dias de espera.

No soneto da fidelidade, segundo Castello, Vinicius define o amor como avassalador, superior, indicador de uma sensação de eternidade, mas que, por ser humano, um dia acaba. Tudo passa. Tudo acaba. Inclusive a paixão, e talvez também o amor, se é que há diferença.

Não reconhecemos essa definição quando somos o sujeito e o objeto do fim do amor, ou da paixão. Nos desespera a descoberta de que não somos mais amados, desejados e encantadores. Quando nos tornamos a síntese do banal e do comum para a pessoa amada, deixamos de existir, até para nós mesmos. Até que encontramos um outro amor, e do amor que nos deixou, só nos sobra a pena e o dó. Nesse momento reconhecemos novamente a eternidade do amor, porque ele é eterno, dado que está acontecendo. É uma explosão de alegria. É a paixão retomada.

Esse belíssimo soneto causou uma polêmica entre Vinicius e Aurélio Buarque de Hollanda, o dicionarista. José Castello conta bem a história. Aurélio reclamou que Vinicius usou a locução “posto que” no sentido explicativo: o amor é imortal posto que (porque) é chama. Para Aurélio a locução “posto que” é concessiva, significa “ainda que”. Vinicius, que além de gênio, era bem-humorado, respondeu que era um poeta, e não um gramático.

Penso que o Soneto da Fidelidade é, ao mesmo tempo, uma constatação, e um álibi. É uma constatação porque, de fato, a experiência do amor, ou da paixão, é inebriante, avassalante, aliciante, envolvente, emocionante, comovente, tocante. Mas também é um álibi porque alguma sabedoria nos avisa que o amor ainda que forte, vive por um triz, simplesmente porque, ainda segundo Vinicius, são demais os perigos dessa vida.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 19/01/2020
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