A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado. Os 50 anos da maior sátira dos Mutantes.

A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado – resenha/análise comemorativa de 50 anos de lançamento.

Nesse dia 1 de fevereiro de 2020, completaram-se 50 anos deste que é considerado por muitos (e por mim), o melhor álbum de toda a discografia dos Mutantes, A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado, que abrindo a década de 1970, representou o auge da contracultura da banda paulistana que nasceu do movimento tropicalista e se viu órfã e responsável por si própria após os “seus pais”, Caetano Veloso e Gilberto Gil, os pioneiros e líderes do movimento, foram presos e exilados após a instauração do famigerado AI-5, durante o governo de Costa e Silva, segundo presidente da ditadura militar. O terceiro álbum, vindo num contexto de mudança, com o enfraquecimento do tropicalismo, a entrada de dois novos integrantes (ainda não oficiais a vista das gravadoras), o baterista Dinho Leme e o baixista Liminha e a influência do rock psicodélico bluesístico de Jimi Hendrix. Este, junto com Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets, lançado dois anos depois, pode ser considerado o mais ácido da história da banda, a começar por sua capa e contracapa. A primeira era uma reconstituição de uma das ilustrações do Inferno de Danti, da obra A Divina Comédia, do escritor e poeta italiano Danti de Alighieri. A fotografia foi batida no jardim da casa dos pais dos irmãos Dias Baptista, num preto e branco que mais parece um desenho feito à mão. Já a segunda (a contracapa) que trazia a real polêmica, com Rita Lee deitada numa cama entre os dois irmãos Baptista, com um café da manhã sobre os lençóis, sendo uma clara referência a obra Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Jorge Amado. Ao lado deles, Dinho Leme, fantasiado de oficial nazista, bebia um cafezinho.

Curiosidades:
- Esse foi o primeiro disco que trouxe o quinteto que viria a ser a formação oficial da banda nos anos seguintes, com Dinho Leme na bateria e Liminha no baixo, apesar desse último instrumento também ter sido gravado pelos irmãos Baptista, em especial por Arnaldo, responsável pelas linhas de baixo de “Ando Meio Desligado” e “Quem Tem Medo de Brincar de Amor” (há discordâncias nas fontes sobre quem tocou baixo nessa última faixa, podendo ser Arnaldo ou Sérgio).
- Há uma gravação liberada por Cláudio César Dias Baptista (o mais velho dos irmãos), de um ensaio da banda, com algumas faixas que estão presentes neste álbum, além da fotografia que ilustra o áudio ser de 1970, ano de lançamento de A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado.
- O álbum marcou a transição dos Mutantes de um rock psicodélico influenciado pelos Beatles e nos moldes tropicalistas, para um som mais autoral e dessa vez com influências de Jimi Hendrix, principalmente nos solos de guitarra.
- Há um maior destaque no álbum ao órgão Hammond, que até aquela época, nenhuma banda ou artista tivera contato, sendo os Mutantes, os pioneiros a trabalharem com o instrumento.
- A faixa “Ave Lúcifer” teve a palavra “abrir” censurada do verso “prometo abrir, meu amor macio, como uma for, cheia de mel/pra te embriagar, sem ninguém nos ver”, pois deixava claro que era uma referência ao órgão sexual feminino.
- Por causa da faixa “Chão de Estrelas”, que era uma regravação em tom de paródia da clássica música, de mesmo nome, composta por Orestes Barbosa e Silvio Caldas, e cantada por este último com voz impostada típica dos seresteiros, o apresentador conservador Flavio Cavalcanti, quebrou o LP ao vivo em seu programa de TV, por considera-lo uma afronta. Essa não é a única alfinetada da banda em outros artistas nesse álbum, já que a faixa “Hey Boy” é uma crítica aos playboys que frequentavam a Rua Augusta em suas carangas, sendo o alvo, o cantor Roberto Carlos, que em sua época de Jovem Guarda, exaltava os carrões como forma de atrair a atenção das mulheres.
- Há uma acusação equivocada de plágio feita aos Mutantes pela música “Ando Meio Desligado”, pelo fato da linha de baixo que abre a música ser muito semelhante à de “Time of the Season”, do grupo Zombies, porém, não se sustenta pelo fato de Ando Meio Desligado ter duas notas a mais.

Análise de faixa a faixa:
Ando Meio Desligado (Composta por Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias):
A faixa começa com uma linha de baixo feita por Arnaldo Baptista, seguida pela percussão de Nana Vasconcelos. Logo em seguida, entra um acompanhamento da bateria de Dinho Leme e da guitarra de Sérgio Dias, tocando um conjunto de notas em loop, enquanto Rita passa a letra num vocal doce e suave. Quando entra uma segunda percussão que mais lembra um chocalho, o acompanhamento da guitarra também muda, mas dessa vez lembrando um “ua ua” muito comum de músicas do reggae, que da abertura ao refrão, cantado em dueto por Sérgio e Rita, acompanhados pelo órgão Hammond de Arnaldo, que, quando a música volta aos seus primeiros versos, começa a repetir o final de cada um cantado por Rita Lee num tom de voz baixo, como se cantasse no ouvido de outra pessoa. A música segue nesse ritmo até entrar um excelente solo de órgão, para novamente voltar à ordem original. Nos últimos minutos, o verso “não leve a mal” é seguido por o que parecem ser miados de gato, substituídos por um solo de bateria de Dinho Leme, seguido por um dos melhores solos de guitarra de Sérgio Dias, ao melhor estilo Jimi Hendrix. A faixa se encerra com Arnaldo berrando dizeres até hoje misteriosos (que parecem palavras misturadas com gritos) e a frase “ó meu Brasil”, dita em coro pelo trio principal. A composição já demonstra a enorme distinção sonora e o apuro técnico dos integrantes em relação aos anos anteriores. Enquanto a letra, segundo obras biográficas da banda, é uma explanação acerca do que o eu-lírico, apaixonado e ansioso pra dizer a sua amada aquilo tudo que ele decorou para ela, sente após fumar maconha, “eu nem sinto meus pés no chão”.

Quem Tem Medo de Brincar de Amor (Composta por Arnaldo Baptista e Rita Lee):
A música mais anárquica dos Mutantes, em termos de sonoridade, é uma verdadeira algazarra de efeitos sonoros e um instrumental frenético que segue o tom dos vocais variantes de Rita Lee, que hora reproduz o tom doce e suave de Ando Meio Desligado, ora um pouco mais impostado, e até imitando uma pessoa estrangeira tentando falar português, além disso, há um segundo canal dedicado só ao backing-vocal da própria vocalista que canta onomatopeias em loop ao longo da faixa, quase como um compasso musical. O primeiro refrão “Não, não, não ama, se ama, me chama que eu vou” é acompanhando por uma linha pulsante de baixo gravada por Sérgio Dias (ou Arnaldo), e concluído com um apito tocado por Rita. Vale destacar a bateria de Dinho Leme e o órgão de Arnaldo, variando entre uma melodia mais parecida com balada, e outra mais frenética, seguindo a ordem dos vocais de forma cirúrgica. O segundo refrão “quem tem medo de fazer amor, fazer amor, AMOR! Quem tem medo de fazer amor, AMOR!” é iniciado com dois chocalhos e acompanhado por gravações do mesmo, mas em outros tons mais agudos e até gritos infantis, reforçando o tom de chacota da música. Os últimos minutos da música são recheados por solos curtos e desordenados propositalmente de cada instrumento e novamente o segundo refrão com mais efeitos sonoros e até um “parabéns pra você” gritado. Toda essa anarquia musical, reflete a visão infantil que se tem sobre os jovens, que somada a letra, indica uma incapacidade dos adultos de falarem sobre sexo com seus filhos, criando situações de constrangimento e timidez tanto por parte dos mais velhos como dos mais jovens.

Ave Lúcifer (Composto por Arnaldo Baptista, Rita Lee e Élcio Decário):
A terceira faixa entra em total contraste com as duas anteriores, mais descontraídas e cômicas, sendo substituídas por uma letra e um instrumental mais sombrios, e variando entre versos cantados por Rita Lee, representando Eva e Arnaldo Baptista, representando Adão, respectivamente. Ela começa com uma batida lenta e limpa da guitarra Sérgio Dias, reproduzindo som de violão, dando abertura a um vocal suave e igualmente lento de Rita “As maçãs, envolvem os corpus nus/ neste rio que corre, em veias mansas dentro de mim”, acompanhado por uma percussão pulsante de Dinho Leme e possivelmente um violoncelo. Na transição para o vocal de Arnaldo (no mesmo tom do vocal de Rita), “Anjos e arcanjos, não pousam neste Éden infernal/E a flecha do selvagem, matou mil aves, no ar”, podemos ouvir um efeito sonoro que lembra um soprar do vento, que ao longo da música, aparece sempre no final de alguns versos. Dando continuidade, junto o próximo verso “quieta, a serpente, se enrola nos seus pés/ é Lúcifer, da floresta...”, é acompanhado uns sons distorcidos, como se fosse uma fita da instrumentação tocada ao contrário, e se encerra com “...Que tenta me abraçar”, cantado por Rita, completando a frase de Arnaldo. O terceiro verso, também cantado pelo Adão da música “Vem amor, que um paraíso/Numa abraço amigo, sorrirá pra nós/Sem ninguém nos ver”, é acompanhado por batidas lentas que, de forma quase abrupta são substituídas por batidas mais aceleradas lembrando um tipo de música ritualística, que abre espaço para o quarto verso cantado pela Eva da música: “prometo a****, meu amor macio/como uma flor, cheia de mel/pra te embriagar, sem ninguém nos ver”, tem em seu final, a adição de um outro canal com o mesmo vocal feminino, reproduzindo um coro. O encerramento dessa complexa faixa é um dueto de Arnaldo e Rita (Adão e Eva) “tragam uvas negras/ tragam festas e flores/ tragam corpos e torres/ tragam incensos e odores”, acompanhado por uma orquestração de Rogério Duprat, finalizando igual ao começo da canção, com um vocal solitário de Rita “Mas tragam Lúcifer, pra mim/em uma bandeja pra mim”, acompanhado somente por batidas lentas da guitarra de Sérgio, mas dessa vez com uma curtíssima e pontual linha de baixo, e por fim, um acorde limpo e complexo da guitarra. A música, repleta de detalhes sonoros do instrumental, reforçam um tom fantasmagórico e sobrenatural que dão força a letra, que aqui, é uma releitura do gênesis da bíblia, onde Eva se revolta diante a armadilha de Lúcifer que a fez cometer o pecado original (o sexo), resultando em sua expulsão do paraíso.

Desculpe Babe (Composta por Arnaldo Baptista e Rita Lee):
A quarta faixa é a mais “radialística” e a segunda mais “flower power” do álbum. Ela começa com uns riffs limpos da guitarra de Sérgio Dias, seguidos por uns gemidos feitos por Rita Lee e uma percussão que, aparentemente, trata-se de um pandeiro, para então começar o vocal arrastado e cheio de ecos de Arnaldo Baptista, acompanhado por uma segunda percussão de congas tocadas por Naná Vasconcelos, enquanto a guitarra de Sérgio segue dando base à música e entrando nos intervalos do vocal. Logo em seguida entra uma linha de baixo mais tremida de Liminha. Em versos como “...não vou mais ser João Ninguém”, “eu vou correndo, buscar a glória/minha glória”, “eu vou viver mais pra mim”, “eu vou correndo, buscar a glória/minha glória”, assim como o refrão “glória, glória”, quando a música carrega um ritmo que quase lembra um samba, com maior agilidade nos instrumentos de percussão, entram os backing-vocals de Rita que elevam a sonoridade, indicando os pontos altos da música. Logo após a metade da faixa, entram algumas onomatopeias cantadas por ambos os vocalistas, com um birimbau de boca ao fundo seguindo os vocais, reforçando o tom jocoso da música, que já é uma marca registrada em toda a discografia da banda. O faixa é concluída com os refrãos, alguns sons produzidos por Arnaldo no vocal e sons de buzina. Na letra, aparentemente o eu-lírico está cansado de gastar seu tempo com uma moça que não corresponde sua demonstração de afeto, optando por se concentrar em si próprio e buscar sua glória.

Meu Refrigerador Não Funciona (Composta por Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias).
Essa faixa, claramente, existia para mostrar toda a habilidade de Arnaldo Baptista no órgão Hammond, o poder vocal de Rita, ao mesmo tempo que apresentava uma letra cômica que era uma descarada paródia das músicas de Janis Joplin. Do começo aos últimos segundos, acompanhamos um poderoso solo de órgão que sobe e desce o tom cirurgicamente e eleva a imersão de quem escuta a música. Enquanto isso, Rita começa seu vocal de forma singela e vai crescendo, com versos gritados, repetição de palavras em tons cada vez mais altos, reforçando a entrega do eu-lírico ao sentimento de excitação. A música então consegue ser sexy, cômica e grandiosa, tudo ao mesmo tempo. Vale destacar o excelente trabalho de bateria de Dinho Leme, com notas pesadas e secas, que lembram bastante o trabalho de Keath Moon, do The Who, ora lento, ora acelerado. Quando entram os vocais de Arnaldo para cantar o desespero do segundo eu-lírico, ouvimos umas batidas pesadas no órgão Hammond que reforçam mais ainda a carga de sentimento, mesmo que por algo um tanto banal, como veremos mais adiante. Logo depois entra um solo magistral de trompete reforçando o tom jazzístico a música, sendo acompanhado por mais onomatopeia do vocal de Arnaldo, e a música se encerra com um curto mas excelente solo de baixo, feito por Sérgio Dias. A letra, na parte de Rita Lee, representa uma moça excitada que não quer ficar sozinha e seduz seu companheiro para que ele lhe dê amor, enquanto o mesmo, na parte de Arnaldo, lamenta desesperadamente o não funcionamento de seu refrigerador.

Hey Boy (Composta por Arnaldo Baptista e Élcio Decário):
Puxada mais para um tom de rhythm blues, a música abre com uma introdução de piano que segue dando a base da música, junto a alguns acordes na guitarra, ambos os instrumentos com a sonoridade bem limpa, algumas onomatopeias em coro masculino, uns assobios e Rita Lee cantando provocações aos jovens rapazes de classe média ou ricos que usavam penteados vistosos no cabelo, blusões importados, compravam carrões para impressionar moças e iam buscar diversão na Rua Augusta, com a mesadinha do papai. A música se encerra com um riff um pouco mais sujo da guitarra de Sérgio Dias e os três músicos cantando “Hey Boy, viver por viver” em coro com a voz afinada. A última coisa que ouvimos é um carro em alta velocidade capotando e matando o playboy descrito pelo eu-lírico.

Preciso Urgentemente Encontrar Um Amigo (Composta por Erasmo Carlos e Roberto Carlos):
A faixa já começa uma poderosa introdução de órgão Hammond, em dois tons tocada por Arnaldo Baptista (e um som de arroto?), Dinho Leme tocando sua bateria de forma nervosa, acompanhados por algumas notas bem agudas na guitarra de Sérgio, dando espaço a uma base no órgão bem frenética e até dançante, quando entra o vocal de Rita variando entre letra e onomatopeia: “preciso urgentemente encontrar um amigo/pra lutar comigo/pra lutar comigo” (2x). Logo em seguida entre o vocal bem distorcido de Arnaldo, acompanhado por riffs poderosos e agudos da guitarra de Sérgio: “Quero ver o sol nascer/E a flor desabrochar/E no mundo de amanhã...”. Na hora do refrão, os dois vocalistas cantam em coro: “Quero acreditar/Quero acreditar/Quero acreditar e a paz que eu tanto quero/Eu consiga encontrar”, dando lugar a gritos e barulhos com os lábios trazendo um tom não só frenético como também cômico para a música, enquanto os backing-vocals de Rita durante os versos cantados com o Arnaldo remetem a músicas bluesísticas dos anos 50, em contraste com uma letra declaradamente hippie. Os últimos versos que não repetem o refrão: “é difícil encontrar/pois é grande a confusão/pode até estar aqui/nessa multidão(3x)/E a paz que eu tanto quero/ele trás no coração” e terminam a música indicando então que o eu-lírico que procura um amigo para lutar com ele, e pode-se entender “lutar” no sentido de luta política, afinal a música foi composta em tempos de ditadura militar. O fato dele procurar na multidão e na confusão, dão a ideia de que o local onde esse eu-lírico procura é uma manifestação, ou uma multidão que está lutando, logo, o lugar perfeito para se encontrar um amigo para lutar em união. A paz que o amigo tanto trás em seu coração, é o desejo de por fim a opressão e a barbárie da ditadura. Enfim, a música se encerra com mais um excelentes solos de órgão, o refrão, onomatopeias, gritos e batidas ágeis na bateria.

Chão de Estrelas (Composta por Orestes Barbosa e Silvio Caldas):
Essa faixa originalmente composta por Orestes Barbosa e Silvio Caldas, sendo esse último o dono da voz impostada que fez a interpretação mais conhecida dessa canção, aqui, ganha uma versão mais jocosa e satírica, como uma resposta dos Mutantes as críticas e boicotes com teor reacionário ao seu rock n’ roll. A música abre bem respeitosa com a versão original, ao som de clarineta tocada por Rita, um violão bem seresteiro, provavelmente tocado por Arnaldo, que canta bem dentro da fórmula usada por Caldas, a voz impostada e as vogais arrastadas. Até que na metade da música entram efeitos sonoros de helicópteros, por barulhos de relógios cucu, objetos batendo, papeis sendo mexidos, gritos de torcida de futebol, porta sendo aberta, tiros de pistola de filmes de faroeste, entre outros sons completamente aleatórios mas que reforçam a anarquia musical presente nessa faixa, enquanto Arnaldo força cada vez mais o vocal, já indicando o tom satírico e exagerado da música. Na parte instrumental, um acompanhamento de uma orquestra bem animada, típica dos salões de dança muito comuns nos anos dourados e a bateria bem animada de Dinho Leme. Em dado momento, por alguns segundos, a música fica mais calma, para entrar um trombone bem melancólico, seguido por um peido vocal, representando a cereja do bolo de escracho dos Mutantes na faixa. A música então volta para a letra, o instrumental exagerado e os efeitos sonoros, para enfim terminar com Arnaldo assumindo a comédia da música, passando a letra de forma gozada: É a cabrocha, o luar e o violão/É a cabrocha escorregando no sabão/é os gato miando no porão” e finalizando com um gemido e a música termina com uns curtos riffs mais acelerados no violão e a orquestra. A letra é uma clássica seresta que romantiza os romances entre pessoas pobres morando em barracões, as condições precárias de se viver. Nisso, os Mutantes adicionam um instrumental completamente caótico e cômico como uma gozação desse tipo de música.

Jogo de Calçada (Composta por Arnaldo Baptista, Ilton Oliveira e Wandler Cunha):
Essa faixa já é um hard rock misturado com o pop rock típico dos Beatles na fase “iêiêiê”, quase como uma homenagem as raízes musicais dos Mutantes antes do seu envolvimento com a tropicália e a psicodelia. Todos os instrumentos tem o seu momento para brilhar, com destaque aos momentos mais inventivos da bateria de Dinho Leme, a base bem jazzística da guitarra de Sérgio, mas variando entre uns riffs mais acelerados e uma incrível linha de baixo feita por Liminha. Outro destaque é o vocal de Rita e Sérgio, em coro, que trazem um tom lúdico ao descreverem as brincadeiras de crianças nas calçadas vilas de São Paulo, além de divagações sobre a vida, o dia de amanhã, a lua, etc. Até que o refrão “E nós a beijar pra lá e pra cá cha, cha, cha”, misturando ao instrumental, cada vez mais frenético e até um tanto bagunçado assumem um caráter mais psicodélico a faixa. A letra ilustra um eu-lírico e sua namorada observando as crianças brincarem e o passar do dia. Quando a chuva chega e a brincadeira acaba, um sentimento de esperança é trocado por ilusão, mas o dia de amanhã vai chegar. Em outras palavras, a chuva pode representar tempos ruins que deixam as pessoas menos esperançosas, mas sempre há um outro dia para se recobrar a espera por dias melhores.

Haleluia (Composta por Arnaldo Baptista):
Essa é mais uma faixa ácida do álbum, mas dessa vez voltada à igreja católica. Basicamente é a clássica canção “Haleluia”, mas com um tratamento rock n’roll, se aproximando mais das versões cantadas em igrejas protestantes dos Estados Unidos, só que com um acompanhamento de bateria de Dinho Leme, no melhor estilo Ringo Starr, uma base de órgão bem animada, outro incrível solo de baixo feito por Liminha que dita o tom cada vez mais frenético da música, além de variações vocais na letra, e o final com todos os instrumentos transformando uma música de igreja em um divertido pop rock.

Oh, Mulher Infiel (Composta por Arnaldo Baptista):
A última faixa, totalmente instrumental é simplesmente a mais pesada de todo o álbum, e mais parece uma forma dos Mutantes mostrarem suas habilidades instrumentais usando um título aleatório, mas chamativo. Ela começa com um incrível, enérgico e longo solo de Dinho Leme na bateria, chegando a lembrar o trabalho de John Bonham na faixa Moby Dick, presente do álbum Led Zeppelin II, de 1969, gritos e assobios (provavelmente é uma gravação de apresentação ao vivo). Logo em seguida entra a guitarra distorcida e acelerada de Sérgio Dias, fazendo riffs, solos experimentais, lembrando os feitos por Jimmy Page, também do Led Zeppelin, além de um acompanhamento pulsante do piano e do órgão de Arnaldo Baptista (tocados um atrás do outro, respectivamente). Na metade, o som mais pesado é substituído por um solo de piano mais bluesístico tocado por Arnaldo que grita algumas onomatopeias, e a bateria mais rítmica de Dinho. No final volta o tom mais pesado e hard rock da música que se acaba.
E assim chego ao fim de mais uma resenha de um álbum dos Mutantes, que no caso é o meu preferido de todos os tempos. Como considerações finais, é interessante destacar que esse álbum marca a transição do som nos moldes tropicalistas e da psicodelia britânica feito pelos Mutantes, para dar espaço a uma linha mais variada, experimental e principalmente, mais autoral da banda, com instrumentais cada vez melhores e o tom ácido estabelecido nas faixas de A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado, que durou até 1973, com a adoção do rock progressivo no disco O A e o Z. A próxima análise será do álbum Tecnicolor, que seria lançado em 1971, mas só chegou ao público em 2000.

Fontes:
A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado (wikipedia)
A Divina Comédia dos Mutantes de Carlos Calado
Rita Lee – Uma Autobiografia
Discografia Mutante, de Chris Fuscaldo
Matéria sobre o álbum feita pelo site Mofo.
Gabriel Craveiro
Enviado por Gabriel Craveiro em 25/02/2020
Reeditado em 25/11/2020
Código do texto: T6873662
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