Análise do Conto Ajuricaba do Nascimento

Análise do Conto Ajuricaba do Nascimento

Por Elisabeth Alves

“carregamos em nós as estranhezas.”

Regina Ruth Rincon Caires

INTRODUÇÃO

O Conto “Ajuricaba do Nascimento”, de Regina Ruth Rincon Caires faz parte da Série Amazônia do Desafio EntreContos, do site de mesmo nome. O texto em si é auto-explicativo, brilha em sua elegância e pureza, perpassa saliências sociais, sem ser uma bandeira de defesa ao proletariado. na verdade, capta na doçura e crueza de uma existência em todos os seus ângulos e por isso mesmo pode sim ser um retrato do homem que migra para ter uma vida digna e depois volta ao seu terrão natal para encontrar o abrigo que nem sempre encontrará.

A escritora, paulista, de Auriflama, é contista, mãe, esposa e avó, tem formação em Letras e Direito, É participante assídua de Concursos Literários. Tem textos publicados em livros físicos, mas o Conto que vamos analisar está disponível apenas no site do Desafio Literário supracitado.

O Conto

Fidelidade à linguagem, o espaço e a cultura

Ajuricaba do Nascimento nasceu no Amazonas, ficou órfão e foi levado para a casa paroquial, local em que viveu sua infância ao lado de bons amigos e do padre Leoncio. Adulto foi para Brasília e depois para São Paulo e, no fim, retorna para sua terra natal. Para manter o fio da meada e ainda assim criar uma trama bem tecida, a autora usa-se da digressão, mas como afastamento que mudança de tema, o que aqui faz o caminho de um rio que se aproxima e se afasta da terra. Entretanto este artifício não muda nada na estrutura do Conto. A narrativa permanece fiel ao tema e à vida de Ajuricaba, só passa por outros cenários, como qualquer caminho fluvial. Passa por outros relacionamentos, decepções, descobertas e saudade. Ou melhor, o banzo.

Ajuricaba é uma releitura de nosso herói amazônico. Lindamente construída. Principalmente levando em consideração a autora não ser originária do Amazonas. Nela o herói amazonense, renascido, sem grandes sonhos de preservar a etnia, afinal, nasceu em outra época, passa por situações que o fazem perder um pouco de sua inocência.

Se afasta de seu lugar de origem, mas suas informações espaciais permanecem. Pauta sua nova vida no que viveu e deixou de viver na longínqua Iranduba. Isso porque a sensação de pertencimento está posta nele e mesmo que as situações do homem comum o afaste de seu lugar de nascimento, ele leva consigo seus valores e lembranças. Sente falta do rio, do suor específico do amazonense, tem como referência permanente de perfume as flores do jaçanã.

A construção do espaço e a delicadeza com que esculpe a personagem é a prova cabal que a escritora consegue como poucos utilizar os elementos textuais e extratextuais para nos brindar como uma obra que desperta o interesse e as emoções, já que com isso consegue deixar claro as verdades de Ajuricaba. Verdade presente em suas lembranças e valores. Ajuricaba praticamente não têm voz no texto, mas suas características amazônicas possuem um corpo tão físico quanto os que o próprio leitor possui. E nisso habita a verdade do texto, da autora e da personagem principal.

Sim, há verdade, ou melhor, realidade em Ajuricaba, a pessoa. O professor e escritor, Rogel Samuel, ao falar sobre a criação literária e o reflexo desta na Sociedade diz, sobre o real na Arte: “Real é tudo que se pode ser concebido pelo intelecto” e nesse sentido, ainda segundo ele, “a criação cria sua própria realidade, que permanece válida” mesmo que negue a realidade que conhecemos fora do ambiente da literatura. Assim, ao modelar Jura, a escritora opta por elaborar uma realidade sólida que faz que a personagem mantenha o amor por sua Terra e Águas e essa configuração resulta em uma personagem ímpar, espetacular.

Anaí, a mãe do pequeno Ajuricaba é figura típica do imaginário amazônico, já que é o amor proibido do pássaro Uirapuru, quando ele está transformado em sua versão humana, o guerreiro Quaraçá.

A fidelidade ao ambiente aparece também nas atividades comuns da Iranduba anterior à ponte. Aqui, um marco histórico. Afinal, para alguns municípios amazonenses, a Ponte Jornalista Phelippe Daou traz uma marca de independência muito forte. O comércio e demais atividades de renda depois dessa construção ganham visibilidade, uma vez integrados à Capital. Porém, ainda hoje há essas ocupações voltadas ao artesanato.

Buscar conta-de-lágrimas, capim-dourado e sementes caídas pelas frestas de floresta são tarefas dos curumins ribeirinhos até hoje.

Zé Mudinho é o menino “sem mando” presente em todas as comunidades mais pobres. São crianças que aprendem a se virar logo cedo, sem esperar ordem.Para o leitor menos atento é um elo aparentemente solto na narrativa, mas que dá ritmo, sentido. Sem ele a pesca seria a pesca comum de todos os que moram perto dos rios. Sem ele não haveria motivo para a volta.

Outro aspecto interessante dessa é que em um texto tão fluente traz um personagem com mogilalia. E é uma tartamudez reflexa ao ouvido. É uma jogada bem humorada e proveitosa.

Ticar o peixe, costume local que as pessoas de fora não gostam porque atrapalha tirar a espinha. É muito regionalismo e mais, sem realmente ser regional! O texto é tão amazonense que parece que algum nativo escreveu e isso é legal.

O costume de fortalecer a ideia com o mover do corpo, tão manauara, está presente na negação no primeiro momento do Conto: “coloca a mão à frente reforçando recusa para a comissária.” É interessante dizer que isso é movimento e não tocar o outro.

O Conto ganhou um ar antigo, mas manteve a contemporaneidade, o que por si só já é um grande feito. Poucos autores conseguem ter essa habilidade.

Triste e levemente cômico, o texto é de uma natureza bívia, surpreendente. Reflexivo-contemplativo, uma característica de um de nossos escritores amazônicos mais famosos, Márcio Souza, autor esse que tem uma habilidade de reconto tão marcante quanto a apresentada no texto.

O banzo amazônico está fervilhando, ou melhor, marulhando na produção textual. O rio, o Copan-peixe, o sentimento quase bíblico de Jonas dentro do grande monstro aquático, a natureza, a pesca, um "Amazonês" sútil e ainda assim pulsante, reforçando a ambivalência do conto.

Conclusão

O fim é doce e poético, mesmo se tratando da Morte: Jura agora é de novo Ajuricaba, o herói e, desce para as águas atrás de sua liberdade. Imagine aqui que seu debater é o mesmo que o da figura histórica, o guerreiro também escolhe o rio como seu túmulo ou liberdade e aqui se diferenciam as duas figuras. O Ajuricaba retratado lindamente no texto deixa apenas a mala, intacta no hotel, o Guerreiro manaós deixou seu povo. E detalhe: É uma morte ou não, já que a autora cria a dúvida usando tanto o verbo debater quanto a frase: “No hotel, apenas a mala o espera.”

Em tempo, a morte pela natureza é uma característica da escritura contista amazônica bem observada por Zémaria Pinto em seu estudo sobre o Conto Amazônico (2014) e aparece ou é apenas sugerida aqui no Conto, quando Ajuricaba se vai pelas águas em seu balé aquático. Aqui o texto sugere que a Natureza mata e morre ao mesmo tempo quando poeticamente ocorre o rompimento estrutural das plantas.

Enfim, o mais poético dessa prosa é a Linguagem. A imagem das vitórias-régia desprendendo da raiz maior (matriz) e desprendendo dos cordões é de uma sutileza magnífica.

Referência

CAIRES, Regina Ruth Rincon, Ajuricaba do Nascimento, Desafio Amazônia,

https://entrecontos.com/2020/06/07/ajuricaba-do-nascimento-ipojuca-manao/

PINTO, Zemaria. O conto no Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2011.

ROGEL, Samuel, Arte e Sociedade. in Manual de Teoria Literária", 1984, p.15 - ed Vozes, RJ

Elisabeth Lorena Alves
Enviado por Elisabeth Lorena Alves em 11/02/2021
Código do texto: T7182152
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