Da Melancolia à depressão

CAPÍTULO 1 - DA MELANCOLIA NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA À

IDADE MÉDIA (SÉCULO XIII – XVI)

1.1 Um breve histórico

Por Charley A. Santos

O presente capítulo tem por objetivo discutir, em largas linhas, a melancolia, tal como entendida por determinados autores na Antiguidade. Nesse sentido, destaca-se três importantes personagens:

Em primeiro, e talvez o mais importante, é o célebre “pai” da medicina grega, Hipócrates. O filósofo, na esteira do pensamento de Políbolo, foi o primeiro a identificar os temperamentos que afligiam homens e mulheres, sendo as mudanças ocorridas no devir da história, notadamente no que se refere à percepção do “mal-estar” humano que Hipócrates denominou de melancolia, já inerente à existência humana, tal como Tourinhos (2003). A melancolia seria a palavra chave nos dias de hoje, da psiquiatria, sendo ela talvez, a mais íntima e familiar de todas as doenças mentais. Na verdade é desde a antiguidade que o ser humano já nutria uma “dor” que, latentemente, corroia a alma e arrebatava as pessoas que supostamente sofriam do que Hipócrates chamou de temperamento melancólico.

Conforme Cordás (2002), a arbitrária história da melancolia foi designada na Bíblia como algo demoníaco, quando Saul, personagem bíblico, deu às costas para Deus e foi arrebatado em uma tristeza profunda. Tal como Franco (2005), seus servos cantavam para acalmar o Rei. Pela primeira vez na história, conforme Franco (2005), notou-se a “Musico terapia” na antiguidade.

Já na medicina grega, com Hipócrates (c.460 a.C.- 370 a.C.), definiu-se o cérebro, como o centro das emoções e das patologias que tomavam a alma humana, e responsável era, pelo estado psicológico dos indivíduos. Tourinhos (2003) afirma que a história da melancolia denominada bile negra, é composta de um quadro objetivo e subjetivo que atinge o indivíduo que sofre uma espécie de “dor invisível”. Dor essa indescritível caracterizada pela tristeza manifesta e pelo medo inexplicável. Teoricamente ela poderia ser entendida como uma pré-disposição, própria do organismo. Nesse caso, a chamada melancolia deixa de ser uma doença e passa a ser uma condição da própria natureza humana.

Solomon (2002) afirma que a melancolia é tão antiga quanto o ser humano e, por longos períodos foi confundida com a tristeza, o sentimento de culpa, conturbação do sono, alimentação em descontrole, desespero constante etc. Em outras palavras, entender a “melancolia” é compreender a criação humana.

Conforme Solomon (2002), a percepção da melancolia no ocidente não pode estar dissociada dos acontecimentos históricos. O autor assevera que em Hipócrates já era possível encontrar muitas tentativas na busca da cura física e espiritual do que hoje chamamos de “mal do século” (Barros, 2005) ou depressão. Mesmo em Hipócrates, de acordo com Solomon (2002) os distúrbios, as mudanças de humores, delírios, insônia, ansiedades e a loucura teriam como sede principal o cérebro. O médico grego, Hipócrates, dizia que a melancolia poderia ser de origem uterina ou por trauma e sustentava que sua “força” sobrecarregava o ser humano de desânimo, aversão à comida, irritabilidade e inquietação, até mesmo tendência à morte voluntária. Para controlar o senso de humor dos indivíduos propunha uma dieta com ervas no intuito de melhorar o terror que invadia o corpo, a chamada bile negra. Para o autor mencionado, quando o excesso de bile negra, o indivíduo mergulha em uma tristeza profunda de tal modo à correr o risco de ceifar à própria vida. Assim pensava-se na possibilidade de não mais sofrer. Portanto a válvula de escape do sofrimento que não se enxerga, poderia ser em tese a morte.

A teoria Hipocrática, no que se refere à melancolia, baseou-se em quatro elementos essenciais. Tais elementos, dizia Hipócrates, regula as emoções e o caráter dos indivíduos, conforme a alternância dos quatros órgãos: baço, fígado, cérebro e coração (Cordás, 2002, p. 20).

Baseado na teoria dos quatro elementos, água, terra, ar e fogo, o médico grego daria sentido aos quatro órgãos que compunham a formação humana, ou seja, o cérebro, o coração, o baço e o fígado. Tratava-se de um modelo de observação clínica, haja vista que Hipócrates, se esforçou no intuito de revelar que a melancolia tinha como fonte a intoxicação do cérebro pela bile negra. Cordás (2002, p. 27), em sua memorável obra, nos oferece um precioso esquema da teoria dos humores.

O quadro , demonstra que Hipócrates qualificou os indivíduos que supostamente estavam sobre ataque da bile negra. Vejamos: o sanguíneo, colérico, fleumático, melancólico.

O primeiro deriva-se do sangue do indivíduo, pois o mesmo estaria contaminado pela bile negra. O segundo, aquele que predomina o desequilíbrio, a raiva, o desvio de comportamento. O fleumático, é aquele que possui a tranqüilidade ou pelo menos não deixa transparecer sentimento ou perturbação. É um indivíduo possivelmente manso, ou desligado do que se encontra em sua volta. O melancólico, tal como Cordás (2002), se caracteriza pela predominância de bile negra, que exprime e resulta em um temperamento triste e aversões das coisas que a vida lhe impõe, e conforme Barros (2005), seria um estado inerente ao ser humano.

Mais tarde a escola hipocrática teve ocasião de identificar outras patologias como a histeria, fobias e outras perturbações.

Como se vê a teoria dos humores da medicina clássica explicava os variados estados emocionais que assolavam as pessoas. Conforme Cordás (2002), a teoria era perceptível quando o estado do humor aflorava, exaltava alegria e descontração, um temperamento que consideraríamos “ideal” para os dias de hoje. Por outro lado, a predominância da bile negra levava o indivíduo à tristeza e à inquietude. Ficava o indivíduo irritado, nervoso e com as idéias “fora do lugar”. Para aliviar os sintomas, aplicavam-se sangrias no corpo e, muitos eram levados ao vomitório, objetivando a retirada do “mal” que afligia sua alma. Todavia, tal como argumentou Franco (2005), a maioria dos pacientes morria por desidratação. Também eram utilizados outros meios como ervas e laxantes. Curioso é que, mesmo naquele tempo já se sabia da importância das dietas, exercícios físicos, massagens, banhos medicinais e o toque de músicas. Além disso, era imperiosa as discussões filosóficas e as mudanças no pensamento para a contenção do sofrimento.

Hipócrates localizava a sede da emoção, pensamento e doença mental no cérebro: É ele que nos deixa louco ou delirante, nos inspira com horror e medo, seja noite ou dia, traz-nos a insônia, os equívocos inoportunos, as ansiedades sem alvo, a desatenção e os atos contrário ao hábito. Essas coisas de que todos sofremos vêm do cérebro quando este não está saudável, mas se torna anormalmente quente, frio, úmido ou seco. Hipócrates achava que a melancolia mesclava fatores internos e ambientais, que um longo trabalho da alma pode produzir melancolia, e distinguia doenças que surgiam no rastro de terríveis eventos de doenças sem causa aparente. Classificava ambas como versões de uma doença única precipitada quando o excesso de bile negra – fria e seca – rompia o equilíbrio ideal dos quatro humores. (Cordás, 2002, p. 32).

Como visto, para Hipócrates as funções e as patologias tinham como fonte o cérebro. Aristóteles, citado por Cordás (2002), considerava o coração como o centro das emoções. Contudo, o coração apenas é um mecanismo que bombeia sangue para trilhões de células diferentes que compõe o ser humano. De acordo com Platão, citado por Cordás (2002), Hipócrates é considerado o pai da medicina e desfaz toda discussão sobrenatural com a teoria dos humores, denunciando aqueles que invocavam os deuses para a cura do enfermo. Aos portadores dos “deuses”, os gregos taxavam de charlatães e trapaceiros.

Segundo Cordás (2002) Aristóteles, pode ser incluído na história da medicina, haja vista que suas idéias à cerca da melancolia realçavam a medicina durante séculos. Sendo discípulo de Platão, manifestava por definição seu sentimento melancólico e afirmava que os filósofos, políticos, artistas e poetas eram melancólicos. Hipócrates já teria identificado esse sentimento em pessoas talentosas, O excesso da bile negra, quando aflorava, jogava o indivíduo no abismo, no desespero e em uma tristeza arrebatadora a ponto de retirar sua vitalidade para atividades cotidianas da vida.

O século II a.C., afirma Cordás (2002), marcou o apogeu do Império Romano, e a Grécia tornou-se província de Roma.

Dessa maneira é possível destacar uma verdadeira legião de médicos gregos bem sucedidos, que começa por Asclepíades de Bitina (c. 120 a.C - 30 a.C.), misto de filósofo e médico que estabeleceu a medicina grega em Roma e o primeiro a diferenciar

alucinações de delírio. (Cordas, 2002, p. 24).

Cordás (2002) enfatiza que em Roma vários médicos da Antiguidade tentaram identificar essa disposição mórbida à melancolia, e Sorano de Éfeso destacou-se sobre suas concepções clínicas na doença mental dentre outras patologias. Descreveu em seus pacientes disposições melancólicas e paranóides enfatizando que, tais indivíduos, ora desejavam a vida, ora à morte. Suas vidas eram eternas e terríveis batalhas terríveis e/ou complôs contra a própria existência.

Sorano, citado por Cordás (2002), é responsável pela primeira biografia conhecida de Hipócrates. Ele era outro médico da Roma Antiga, chegando a ser comparado com Hipócrates. Conforme Cordás (2002), outro médico grego, Galeno, anos depois obteve grande importância pelo seu talentoso trabalho médico e filosófico. Dissecava macacos para identificar e conhecer o sistema cardiovascular, nervoso e os ventrículos cerebrais. Pela primeira vez, o médico grego Galeno, descreveu as disposições que hoje consideraríamos fora dos padrões da normalidade: o delírio dos alcoólatras e as disposições melancólicas.

Grande conhecedor dos textos hipocráticos Galeno reafirma a especificidade da melancolia e enfatiza que embora os pacientes sejam diferentes uns dos outros, apresentam semelhantes sintomas, tais como falta de ânimo, apetite dentre outros. A teoria dos temperamentos de Hipócrates influenciará a medicina nos próximos mil anos (Cordás, 2002).

1.2 A melancolia e a Idade Média (XIII-XVI)

Franco (2005) afirma que a melancolia esteve presente em todos os períodos da humanidade, mas foi na Idade Média que os melancólicos se depararam complexa a batalha entre “Deus” e o “demônio”, pois aqueles que eram tomados pela tristeza, insônia, falta de forças para a luta do bem contra o mal, conforme apregoava a igreja católica, eram tidos como satânicos.

A melancolia na Idade média, conhecida como Idade das Trevas, marcou o fim das leituras dos textos e dos primeiros pensamentos gregos sobre a psiquiatria, pois o primado da fé tomou lugar, deu novo rumo ao pensamento sobre as “doenças mentais” e, dentre elas, a “melancolia”, pois seria de capital importância naquele momento a obediência aos textos sagrados do cristianismo. Em tais condições, o homem medieval que demonstrava sua tristeza era repugnado e punido pelo próprio “Deus”, haja vista que ele era portador do mal que não assegurava os desígnios divinos. Nesse caso, é preciso chamar atenção para a ignorância ou mesmo o jogo de poder que assolava a percepção da melancolia, haja vista que ela, na verdade, é tão antiga quanto a existência humana, fazendo parte, inclusive, da própria natureza construtora da humanidade. Tal como afirma Tourinhos (2003), o ser humano não vive sem sofrimento; a dor é própria da condição humana, sendo a história de Adão e Eva uma boa metáfora do sentimento de culpa, vergonha e remorso que representa o pecado original, tão presente nos melancólicos. Na Idade Média, homens e mulheres nutriam o medo da morte sem as graças de “Deus”. Conforme apregoava a igreja católica, o melancólico possuía algo de demoníaco o qual deveria ser exorcizado e/ou exterminado da terra. O homem tornou-se repudiado na sua própria vida e sua tristeza a esmagadora infiel do corpo e da alma.

Por outro lado, na Idade Média, dependendo do status social no qual os indivíduos estavam inseridos, sua melancolia era entendida como dom de Deus e sua perfeição - apesar do sofrimento - estaria nos padrões de conformidade divina. Mas, o mundo medieval preservou para os excluídos a condenação: morrer consciente da rejeição e na “glória do senhor”. Conforme Cordás (2002, p. 30): “o mundo ocidental mergulha, então, numa nosologia que abandona órgãos e humores e que se baseia na culpa, no pecado, nas bruxas e em todas as formas que o demônio pudesse assumir. A medicina como profissão desintegra-se”.

A melancolia - na esteira do pensamento religioso da época - era entendida como força satânica, um pecado capital, o mal que assolava a terra e a possibilidade dos espíritos impuros se apossarem dos seres humanos. Como conseqüência, era comum a prática de exorcizar ou mesmo exterminar o melancólico, haja vista que ele infectava a terra.

Em outras palavras, no melancólico estava latente e manifesto a luta do bem e o mal, o combate entre “deus” e o “demônio” e, por fim, a necessidade da libertação da alma.

A igreja católica desestimulava qualquer avanço nos estudos dos sentimentos dos melancólicos. A instituição, através da livre interpretação das metáforas da Bíblia, tendia a condenar não somente os melancólicos, mas também os esquizofrênicos, epilépticos, “loucos” e desviantes de toda natureza (Richards, 1993).

A história é um misto de crises convulsivas (?), conversivas (?), êxtases místicos e a certeza de que deve sofrer todos os males do mundo por carregar uma culpa eterna, que não oferece salvação. (Cordás, 2002, p. 39).

Conforme Cordás (2002), as atitudes do “cristianismo” eram seguidas à risca, pois poucos apostavam na inconformidade oriunda da religiosidade vigente. As divergências de pensamento eram punidas e muitos eram excomungados e expulsos da comunidade eclesiástica. A idéia da existência de um só “deus” colocou de lado outras possibilidades de salvação e a Bíblia tornou-se – em tese – a única salvação dos enfermos e o caminho certo para a ressurreição da carne. Esta conjuntura bloqueou os avanços científicos em um período no qual o inquisidor, teoricamente, tornou-se o “médico” das almas e a autoridade máxima sobre o destino das pessoas. De acordo com Cordás (2002), o tratamento das doenças mentais, e nesse caso não ficava de lado os “melancólicos”, era em geral acompanhado de tortura, sofrimento na fogueira, chegando mesmo à abjuração. Certamente não foram poucos os “doentes”, deprimidos e psicóticos que perderam a vida após severas torturas por ignorância e poder de normas estabelecidas pelo pensamento religioso medieval. O debate em relação aos desviantes e melancólicos não era outro senão o que se tratava de indivíduos que andavam de mãos dadas com os pecados do mundo e que mereciam total desconsideração. No caso dos melancólicos, a questão não deixa de ser cômica, a ponto da igreja católica condenar a infelicidade, a tristeza, a insônia, a repugnância à comida, entre outras coisas que eram consideradas heresias. È importante mencionar que os franciscanos e os dominicanos estudavam medicina dentro de seu monastério, tentando manter o conhecimento médico da antiguidade, inclusive os textos de Hipócrates (Cordás 2002). Mas a ênfase era, sem duvida, à cura espiritual, conforme o regimento da Igreja Católica na Idade Média.

Conforme Cordás (2002), a partir do século IVX, o termo melancolia passa a ser chamada pela Igreja Católica de acídia ou acédia e foi colocado como uns dos mais complexos pecados, ou seja, uma das disposições de enfraquecimento da fé em “Deus” e fraqueza em resistir aos demônios. Assim, acídia seria sinônimo de algo satânico, até mesmo a incorporação do próprio demônio. Conseqüentemente, a igreja condenava este estado psicológico. De acordo com Franco (2005) essa disposição foi graças a ignorância vigente que ditavam as regras no mundo medieval.

Conforme Cordás (2002), o século XVIII marcou o declínio absoluto dos dogmas da igreja católica, e assim deu-se a ascensão do racionalismo, denominado “mundo das luzes”. Acreditou-se na conquista da dignidade humana, na qual homens e mulheres romperam com o grande poder da divindade, mergulhados que estavam em dogmas e doutrinas apregoados pelas igrejas e sempre arraigados por sofrimentos e lágrimas. Porter, citado por Cordás (2000), afirma que a ascensão da ciência chegou mesmo ao ponto de desejar “dar conta do mundo” controlando doenças e até mesmo a imortalidade física do corpo humano. No início do século XVIII, as divindades foram substituídas pelas crenças e avanços científicos, uma vez que tais estudos, muitas vezes, foram interrompidos com o poderio católico. Na medicina, por exemplo, era notório o avanço no conhecimento do corpo humano: “não pense, faça a experiência” (Hunter - 1728-1793). Entende-se que o experimentar, o provar, ou seja, a ciência experimental avançaria ao ponto dos doutrinadores da igreja não mais obteve total domínio sobre os chamados “Iluministas”, cujos membros romperam com o divino e avançaram rumo ao conhecimento científico. Conforme Culler, citado por Cordás (2002), a melancolia não mais era, teoricamente, conforme afirmava Hipócrates com a teoria dos humores, uma patologia dos órgãos, do coração, do fígado e do baço, mas sim, um desequilíbrio cerebral passível de excitações e colapsos. Cordás (2002), salienta que o cérebro é composto de complexos impulsos elétricos e se transformam em estímulos, seja sentimental ou físico. Processado tais estímulos, importante na sistematizada percepção da vida, transforma, tais sentimentos em conhecimento. Essa premissa desfez a teoria dos humores defendida na antiguidade por Hipócrates. Culler, citado por Cordás (2002), afirma que é necessário diminuir a excitação e sentimentos de tristeza e aceitar o imperativo da razão.

O otimismo Iluminista, no século XVIII, confiou na razão a possibilidade da felicidade plena da humanidade. Esta elevaria a dignidade do homem e a solução de todos os problemas, sendo o avanço científico o caminho para o conforto e a tranqüilidade dos homens e das mulheres. O século das luzes firmou um avanço tão impressionante que parecia realmente que resolveria os problemas que assolavam o mundo; até mesmo condicionou achar que o homem poderia, inclusive, controlar as forças naturais e a cura da maioria das doenças que invadiam os seres humanos. Tudo isso, obviamente, devido ao avanço da medicina que, teoricamente, decolava ao mesmo tempo em que rejeitava os dogmas da igreja católica. Cordás (2002) salienta que a psiquiatria, influenciada pela filosofia de John Locke, ao contrário da teoria dos temperamentos, chegou a defender que a “loucura” não passava de uma falha nas organizações das idéias que deveriam ser transformadas em conhecimento. A melancolia, nada mais era que uma disfunção nervosa, longe das acepções de Hipócrates.

Cullen, citado por Cordás (2000, p. 62), desenvolveu um esquema de sintomas, na tentativa de delinear o estado melancólico. Para ele, “a melancolia possui vários subtipos, dentre eles:”

1. Falsa percepção do seu estado de saúde julgando o que é grave como algo sem importância.

2. Falsa percepção do seu estado de negócios, como se fosse próspero.

3. Amor veemente.

4. Superstições quanto ao futuro.

5. Aversão ao curso e ocupações da vida.

6. Inquietude nas situações vividas.

7. Mania - insanidade universal (isto é, o que acomete o indivíduo tal como uma psicose).

8. Irodyna - inflamação ou distúrbio da imaginação durante o sono.

Sob uma rigorosa avaliação da vida, talvez seja possível sentir um alivio diante da melancolia, ou talvez até mesmo, como afirmaram os renascentistas, ela ser privilégio de gênios, artistas, pintores e escritores. Todavia, vale mencionar que a melancolia, presente somente nos seres humanos, talvez seja a companheira do homem até o fim de sua existência. Conforme Barros (2005), a infelicidade é inerente à humanidade e, provavelmente, diante da hipocrisia da vida e o sentimento constante de culpa do melancólico a morte pode ser a melhor companheira.

1.3 A medicina e a melancolia em debate

Ainda no capítulo em apreço é preciso deixar evidente os avanços porque passou a medicina. De acordo com Spink (2003), a “medicina” no século XI até XIII se caracterizava pelo uso substancial de práticas religiosas, em geral, levada a efeito por mulheres, ou seja, elas usavam ervas medicinais e ritos. Não demorou muito para que essas práticas chegassem aos leigos. No final do século XIII, entretanto, a medicina recebeu novos contornos oriundos do pensamento árabe “engendrado pelas cruzadas” (Spink, 2003). A isso se somaram as descobertas oriundas do Renascimento que encontrou importantes ecos na ciência do século XVII: “a prática médica, embora ainda aberta à todos, se torna progressivamente a obtenção de licenças que só podiam ser obtidas por meio da educação universitária” (Spink, 2003, p. 171).

No caminho do Renascimento, do racionalismo e do iluminismo, a medicina passou a ser entendida como uma das mais complexas “ciências da natureza”. Em tais circunstâncias, recebeu a roupagem do método cartesiano e, por ressonância, passou à profissionalização. Um dos casos de vital importância na medicina é o caso da psiquiatria que, até o século XVIII, pouco avançou em relação às outras especialidades. Na busca de resultados cada vez mais potentes, não foram poucos os estudiosos que se empenharam no entendimento da “alma”, do “cérebro” ou do “espírito” humano. Dentre eles, conforme apregoa Cordás (2002) está Robert Burton, o qual traçou um panorama da saúde mental e assumiu uma postura estritamente médica em relação ao entendimento do espírito humano. “É a loucura um problema espiritual ou médico?” (Cordás, 2002). Loucura e melancolia não podiam ser confundidas e Robert Burton descreve, dentre as causas da melancolia, a idade avançada, o temperamento, a hereditariedade e, supostamente, problema em outros órgãos do corpo que, de uma forma ou de outra, agiam no cérebro. Contudo, ainda havia a associação entre a divindade e o saber médico. Neste caso, para o tratamento da melancolia, nada como a ação conjunta de clérigos e médicos que, unidos buscavam “salvar” o corpo e o espírito. Cumpre frisar que é neste contexto que a medicina vai se masculinizando, pois poucas eram as mulheres que não eram clínicas e cirurgiães práticas. Elas cuidavam dos doentes e dos melancólicos. Naquele período, é notório que era questão de tempo a exclusão das mulheres que, obviamente, sequer podiam freqüentar as universidade. O mesmo, podendo-se dizer do saber religioso. Como se sabe, o saber no campo da religião católica é masculino, restando à mulher o lugar de subserviência e da caridade aos doentes e pobres.

Em 1814, segundo Cordás (2002), foi fundado uma instituição médica para os chamados “insanos”. Não se tratava de curar ou tratar o paciente, mas sim - tal como faziam nas prisões - isolá-lo, estigmatizá-lo e discriminalizá-lo (Goffman, 1992; Foucault, 1992, 1999). Acreditava-se que separar melancólicos, esquizofrênicos, dentre outras “disfunções mentais”, do convívio social poderia trazer um “pouco de paz” ao paciente. Conforme Cordás (2002), já em meados do século XIX, o médico Heinroth desenvolveu terapias para aliviar o sofrimento dos chamados doentes da alma, mas ainda aplicava sanguessugas e pequenos cortes como se fossem sangrias para livrar o doente do mal que levava a perda de ânimo, apetite e até o sentimento de morte.

Incorporam-se as terapias alternativas, dentre elas a de colocar o “insano” em água fria ou quente, na tentativa do choque reverter e curar o processo de insanidade. Era o que os médicos naquele tempo chamavam de “a cura pela água” (Cordás, 2002).

Conforme Adamor da Silva (1979, p. 188), “os medievais faziam os loucos caírem num alçapão e a seguir davam-lhes um banho gelado. A intenção era produzir um choque emocional. Os choques geralmente produziam dois efeitos diferentes: ou os doentes recuperavam a razão, ou perdiam-na em definitivo. O resultado era incerto.

A medicina apareceu, ao contrário dos dogmas da igreja católica, como um poderoso arsenal terapêutico. Após Heinroth, em 1877, Paul Emil Flechsig (que tinha sido seu sucessor), demitiu o seu ajudante clínico, que mais tarde se tornaria um psiquiatra de nome, Emil Kraepelin, acusado de não cuidar bem dos pacientes. Mas Kraepelin (1877) se interessava muito mais pelos trabalhos de pesquisa no campo da psique humana e, neste caso, buscou encontrar maiores explicações para a ainda chamada melancolia

No ano de 1793, Fhilippe Pinel, importante neuropsiquiatra do período, se esforçou por humanizar os doentes mentais, chamados naquele tempo de “loucos”. Pinel, teria como objetivo desestigmatizar a loucura que, desde o século XIII, era entendida como problema, tanto por parte do conhecimento religioso, como pelo infante conhecimento do que viria a ser a psiquiatria médica. Pinel foi um revolucionário e iniciou a humanização e reavaliação da “loucura”, deixando o “doente” livre para falar e descrever minuciosamente os sofrimentos de sua psique. Cordás (2002) afirma que a valorização de Pinel, foi um retorno ao pensamento de Aristóteles que, em certa medida, associou loucura e genialidade, o poeta, o filósofo e os artistas comungavam da mesma associação.

Em 1809, Pinel buscou observar a psicose e definiu a melancolia como doença oriunda de delírios que afetam as funções da mente humana. Era possível que o melancólico obtivesse duas faces: a primeira a do poder, a busca do sexo exacerbado, do hedonismo e do sentimento latente de “fortuna”. A segunda, a mais notória, seria a face da tristeza profunda e a sensação de não fazer parte do mundo. O melancólico era um ser humano que em vida nutria a pulsão pela morte (Cordás, 2002). Na realidade, o indivíduo não deseja a morte, ele quer a vida mas não consegue apagar da mente o tormento do mundo em que está inserido. A morte é um desejo e uma possível solução para a liberdade frente ao desespero e mal-estar do mundo (Cucha & Gerard, 1994; Franco, 2005; Freud, 1995).

Cordás (2002, p. 73) nos apresenta as quatro caracterizações estabelecidas por Pinel em relação à melancolia :

1) Melancolia, ou delirium, relacionada a uma temática ou evento, mas sem furor

2) Fúria maníaca não delirante

3) Delírio maníaco com comportamento extravagante ou violento

4) Demência com abolição do pensamento

A classificação de Pinel era utilizada para caracterizar os “doentes” nos manicômios. Conforme Cordás (2002), Pinel não estava com maiores preocupações no campo da clínica hospitalar, mas grande era sua preocupação com a reforma da instituição manicomial.

A preocupação com a psique ficaria com Esquirol, um dos mais fiéis discípulos de Pinel. Teria ele superado o mestre afirmando que cumpre à psiquiatria o entendimento da mente, pois mais do que as outras ela se caracterizava por ser uma medicina mental. Afirmou também que as disfunções mentais da humanidade deveriam ser encontradas no cérebro e não na metafísica, na filosofia e, tampouco, nos moralistas da igreja católica (Cordás, 2002).

Wernicke (1848-1905), citado por Cordás (2002) foi um psiquiatra que acompanhou Emil Kraepelin. Ele criou um outro quadro para o entendimento da melancolia composto por cinco tipos diferentes de comportamento: a afetiva, a depressiva, a agitada, a atônita e a hipocondríaca. O psiquiatra afirmava que tais formas não tinham correlação com a denominada psicose maníaco-depressiva. Já a escola de Wernicke, com Karl Kleist (1879-1960), definiu um subgrupo de psicoses. Edda Neel, aluna de Karl Kleist, dividiu em dois grupos o quadro afetivo dos considerados deprimidos: (1) o bipolar e (2) o unipolar (Cordás, 2002).

O enunciado, revela a relação de humor em uma hipotética faixa de normalidade. Ele traz as variações do humor em uma determinada psique. Quando esta se encontra na descendência, estaríamos nos referindo a um quadro de depressão. Por outro lado, acima da faixa de normalidade estaríamos no quadro de euforia ou exaltação. De acordo com Reche (2003) é na curva descendente do humor que o indivíduo corre o risco de ceifar a própria vida. A euforia, ou mania, são os momentos de hedonismo desenfreado, prazer à flor da pele ou mesmo pulsão de morte. A psiquiatria contemporânea tem classificado tais variações nesses dois quadros: (1) bipolar e (2) unipolar.

O fato é que os seres humanos, naturalmente ou socialmente, transitam em “faixas de humor”. Ficamos alegres e tristes. No primeiro caso, não é difícil ver como homens e mulheres se relacionam, em geral estão alegres, com projetos em vista, “amor manifesto ou latente”, otimismo em alta, etc. No segundo caso, nos reduzimos à insignificância diante da vida: muitos desejam a morte, perdem a vontade de viver, transmitem pessimismo, abandonam a afetividade e fortalecem o sentimento de morte. Esquecemos que a tristeza é humana e tornou-se comum muitas pessoas ficarem extremamente atormentadas pelo peso e pela hipocrisia que a humanidade manifesta. A vida não é fácil e muitos labutam à procura da felicidade esquecendo-se do sofrimento. Barros (2005), na esteira do pensamento de Schopenhauer (2002), afirma que é impossível a plena felicidade, pois as mazelas que a vida nos mostra é inerente à condição humana. Na verdade, em nossa pequena e insignificante existência estamos fadados a carregar o peso - e talvez isso seja importante - do sofrimento que obviamente nos mostra as verdades da realidade cotidiana na vida e, inevitavelmente, aos pensamentos de mal-estar e de perguntas latentes sobre o “sentido da vida” (Freud, 1997; Tillich, 1976; Costa, 2004).

Segundo Tourinhos (2003), estamos vivendo a democratização do sofrimento. Nesse sentido, tornou-se comum encontrar pessoas com sede de felicidade. Mas é impossível lidar com o previsto, ou seja, de certa forma a melancolia se encontra instalada no constante sentimento de incerteza e angústia. A perda da vontade de viver é uma possibilidade que assombra há séculos homens e mulheres.

É de suma importância entender que tanto a tristeza, como a melancolia estão longe da idéia do que hoje chamamos de depressão (Barros, 2005). Como visto, a tristeza é normal e, muitas vezes, necessária à sobrevivência humana. Imagine uma sociedade repleta de pessoas alegres? A vida seria uma tragédia, pois a civilização (ou a cultura), tal como nos afirma Freud (1997), nos traz o imperativo do princípio da realidade e nos joga em frente à envelhecência, a finitude e a infelicidade. Mais do que nunca a contemporaneidade esconde o fato de que somos seres que experimentamos a alegria, a dor, e a beleza da existência. Mais que isso, é através dessas pulsões que sentimos a vida, as emoções, o renovar de esperanças nos filhos e a passagem da vida que, deve ser vivida, sem medo e com muita coragem (Freud, 1997; Tillich, 1976; Solomon, 2002; Barros, 2005; Menezes, 2006).

Charley Antonio dos Santos
Enviado por Charley Antonio dos Santos em 04/11/2007
Reeditado em 21/02/2008
Código do texto: T723007
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.