Estamira

Filme de Marcos Prado e José Padilha: 2006

Zezen Produções

Rio de Janeiro - RJ

Alguém escreveu no site oficial a sinopse:

"Estamira é uma mulher de 63 anos que sofre de distúrbios mentais e vive e trabalha há mais de 20 anos no aterro Sanitário do Jardim Gramacho, um local renegado pela sociedade, que recebe diariamente mais de 8 mil toneladas de lixo produzidos no Rio de Janeiro. Com um discurso eloqüente, filosófico e poético a personagem central do documentário levanta de forma íntima questões de interesse global como o destino do lixo produzidos pelos habitantes de uma metrópole e os subterfúgios que a mente humana encontra para superar uma realidade insuportável de ser vivida".

Tendo assistido por três vezes seguidas, emocionado eu me pergunto.

– Será mesmo? Quem sofre de distúrbios mentais?

Estamira? Ela é uma mulher que sofreu muito e tem muito a ensinar.

É Estamira quem afirma:

"- Todos homens tem que ser iguais, tem que ser comunistas. Comunismo. Comunismo é a igualidade. Não é obrigado todos trabalhar num serviço só, não é obrigado todos comer uma coisa só, mas a igualidade é a ordenança que deu quem revelou o homem o único condicional, e o homem é o único condicional seja que cor for".

E diz mais:

"-Foi combinado alimentai-vos o corpo com o suor do próprio rosto, não foi com sacrifício. Sacrifício é uma coisa, agora, trabalhar é outra coisa. Absoluto. Absoluto. Eu, Estamira, que vos digo ao mundo inteiro, a todos, trabalhar, não sacrificar."

Aí eu penso comigo. De uma mulher que viveu num lixão por mais de 20 anos e tem a lucidez de proferir frases como essas, podemos dizer ela sofre de distúrbios mentais?

Parece que ainda a escuto dizer:

"-Se queimar os espaço todinho, e eu tô no meio, pode queimar, eu tô no meio, invisível. Se queimar meu sentimento, minha carne, meu sangue, se for pra o bem, se for pra verdade, pra o bem, pela lucidez de todos os seres, pra mim pode ser agora, nesse segundo, e eu agradeço ainda".

Estamira é esquizofrênica, rompeu com a realidade que lhe foi insuportável, e criou um novo mundo. Um mundo paralelo onde ela é a personagem principal.

"-Vocês não vai entender de uma só vez que eu sei, por isso que eu ainda estou aqui visível, formato homem par. Homem par, não tô formato homem ímpar. Formato homem ímpar é vocês, formato par é os… mãe. As mãe é formato par e os ímpar é o pai"

"-Ninguém pode viver sem mim. Ninguém pode viver sem Estamira. E eu me sinto orgulho e tristeza por isso. Porque eles, os astros Negativos ofensivos, sujam os espaço e quer-me. Quer-me, e suja tudo".

Quem foi que chamou essa mulher de louca? Esquizofrênica?

É isso, os esquizofrênicos vêm coisas que ninguém vê. Dizem coisas que ninguém diz. Ouvem coisas que ninguém ouve.

E Estamira? Estamira vê o mundo de um modo muito especial. Fala da criação de Deus de um modo só dela:

"-Que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só fala em guerra e não sei o quê?! Não é ele que é o próprio trocadilo? Só pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado. Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? Quem andô com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria? Ah, não dá!"

Uma mulher indefesa é estuprada na rua onde mora por duas vezes, e ainda é ridicularizada pelo estuprador porque ela apela por Deus? Que Deus é esse? Porque compactua?

Estamira agora é o próprio Deus, criou o seu próprio mundo. Melhor, suportável.

E explica:

"-A criação toda é abstrata. Os espaço inteiro é abstrato. A água é abstrato. O fogo é abstrato. Tudo é abstrato. Estamira também é abstrato.A minha missão, além deu ser Estamira é revelar a verdade somente a verdade seja a mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara. Tem esperto ao contrario, entendeu, que joga a pedra e esconde a mão. Tem o eterno, tem o infinito, tem o além do além".

O problema de Estamira é um só.

Ela vê coisas que todo mundo se recusa a ver. Ela ouve coisas que todos se recusam a ouvir. Diz e faz coisas que incomoda todo mundo, que ninguém quer saber.

Ela é ESTAMIRA, primeira e única, não é um produto do meio como eu ou você e nem um subproduto, como o lixo do jardim Gramacho.

Itabuna, novembro de 2008