Contos proibidos do Marquês de Sade

Eis aqui uma excelente ficção inspirada numa personagem verídica: o Marquês de Sade, escritor de origem nobre que viveu na França do séc XVIII, notabilizando-se por escrever romances eróticos, permeados por personagens depravados, sujos e profundamente imorais (mesmo nos padrões de hoje). Confesso ignorar detalhes sobre a vida real do Marquês, mas é inegável admitir que pelo menos a versão ficcional vale por si e por si fala.

Nossa história inicia-se num respeitável asilo para loucos, onde o escritor encontra-se enclausurado numa cela particular. O abrigo, que comporta piromaníacos, retardados e todo tipo de doentes, é dirigido por um jovem e idealista abade. O Marquês tem permissão para externar seus pensamentos, pois o padre vê na escrita uma forma de catarse para aquela mente doentia... Entretanto, o Sade espalha seus pensamentos além da conta (coisa que não surpreende, pois excesso aqui é palavra de ordem). Ele publica seu livro, e em tiragem nacional, com proteção de uma camareira que transportava suas roupas e ajudava no leva-e-trás de estórias para editora.

Logo que o escândalo literário é descoberto, o “escritor” é proibido de exercer seu ofício, e Napoleão envia um alienista para tratar daquele que, mesmo trancado numa cela, conseguiu constranger e maravilhar toda a França (ambos ao extremo).

Tem-se aí a trama do filme, que se desenrolará com mil desencontros. Ao longo da estória, Sade usará de todos os ardis para poder continuar escrevendo: se lhe tomam o papel, ele risca os lençóis e roupas com vinho, ou mesmo as paredes com seu próprio esterco. Se lhe proíbem de publicar, ele põe a “obra” no teatro. Se o abade lhe cerca as liberdades, ele sussurra estórias para a camareira através de um túnel cavado pelos loucos.

Doente ou não, é um homem fantástico. Sua capacidade de conceber e contar fatos grotescos sobre sexo pode escandalizar a muitos, mas influencia a todos. Inclusive a jovem esposa do alienista, que passa a dar trabalho ao marido depois de suas leituras de Marquês de Sade.

Dizem também que o nome “sádico” inspira-se nesse escritor francês. Não se percebe isso no filme, até porque ele já é pesado o suficiente para comportar, além de tudo que lá está, um toque de sadismo. As imagens são fortíssimas, mas nenhuma chega aos pés das linhas sujas do marquês. Seu texto vai além da sensualidade, desrespeita absolutamente tudo e beira um estado bestial do ser humano. O clima de indecência consegue abalar até mesmo a rígida moral do abade, que começa a aterrorizar-se quando se percebe desejando a camareira. Coincidência ou não, foi o abade que a ensinou a ler, e foi o marquês quem escreveu os livros preferidos dela, imbuída dos quais a moça se atiraria ao padre com sensualismo. Mas também doçura, coisa que não existe (ou não perdura) nesse filme.

Também são trazidas à tona várias questões que um olhar atento poderá perceber, se não estiver preso demais a outros detalhes explícitos: o interessante tema da loucura, de seus limites, de como tratá-la, da opressão imposta pelos supostos retos de caráter e coração, que julgam-se a cima, estando, não raro, no mesmo patamar ou abaixo de qualquer louco. A questão da crueldade humana pura e simples, e, antes de tudo, sempre e sempre, a questão do sexo.

E, para quem é escritor, uma reflexão interessante sobre as conseqüências da literatura, seu poder de modificar o mundo com palavras, ainda que seja para chocar a opinião pública, não sufocar dentro de uma cela ou dizer coisas que simplesmente precisam ser ditas. Traz-se a visão da literatura como necessidade... E, numa momento posterior de sua vida, o padre seria alguém a afirmar veementemente essa verdade.

Jéssica Callou
Enviado por Jéssica Callou em 25/04/2006
Reeditado em 13/05/2006
Código do texto: T145226