QUANTO VALE OU É POR QUILO? ( Por Angela Maria Araújo Leite)

"É um escravo. Mas talvez livre de espírito. É um escravo. Isso fará mal a ele? Aponta alguém que não o seja. Um é escravo do prazer, outro, da avareza, outro, da ambição, todos, do medo."

( Sêneca )

“Quanto vale ou é por quilo?” é uma produção brasileira, lançada no ano de 2005, com direção do paranaense Sérgio Bianchi, cineasta conhecido por produzir obras críticas e polêmicas que exigem uma reflexão sobre as relações estabelecidas na sociedade brasileira, fruto de uma história contraditória que cria e recria senhores e escravos, exploradores e explorados.

Para tanto, são apresentadas duas histórias que se entrelaçam. Uma que se passa no século XVII e outra na contemporaneidade, entre elas perpassam a miséria, a servidão e a morte. Sérgio Bianchi utiliza uma adaptação do conto de Machado de Assis “Pai contra mãe”, que se passa na época do Império e que tem um caçador de escravos fugitivos como um personagem que é capaz de ultrapassar o limite entre a vida e a morte para manter a sobrevivência de sua família; crônicas do século XVIII, de autoria de Nireu Cavalcanti, extraídos do Arquivo Nacional, relatando os lucros obtidos com a escravidão humana e apresentando esses fatos como uma analogia ao atual uso da miséria como forma de lucro.

O filme desvenda um cenário onde a exploração da pobreza é disfarçada em atos de solidariedade, através de uma Organização Não Governamental - ONG , criando uma ponte com o período da escravidão, onde a coisificação do homem era utilizada por senhores e por aqueles que necessitavam sobreviver.

Na primeira cena Bianchi faz uma abordagem intrigante, apresentando a relação entre dois donos de escravos, um branco e uma negra, ex-escrava. Entre eles um escravo roubado pelo primeiro e o julgamento da segunda, condenada por perturbação da ordem, ao tentar recuperar seu escravo. Tal fato, extraído do Arquivo Nacional, possibilita a discussão sobre a realidade vivida por pobres e escravos forros numa sociedade escravocrata que não respeitava seus direitos, a mesma que será a base da atual sociedade brasileira.

A partir daí, o diretor apresenta alguns instrumentos que eram utilizados para “castigar” os escravos e os objetivos destes na visão dos senhores. A escrava que aparece num tronco horizontal surge nos dias atuais, como a mulher que irá lutar pelos direitos dos moradores de sua periferia.

Pobreza e miséria surgem como um produto a ser vendido, expondo as mazelas da sociedade através da manipulação que envolve a criação da imagem de uma mercadoria que deverá atender aos anseios de possíveis doadores, além de servir como justificativa para aliviar a mente dos endinheirados.

O filme não concentra a discussão entre a luta de classes, mas na exploração do ser humano entre classes e dentro de uma mesma classe, uns como forma de lucrar e outros como forma de sobreviver, fazendo uma ponte com o período da escravidão, onde pequenos investidores lucravam com o comércio de escravos, demonstrando em uma das cenas que “o lucro e a liberdade” se amparavam numa pretensa imagem de “amizade e solidariedade”.

Num corte, surge a imagem do diretor de uma empresa, especializada em projetos sociais, que apresenta um projeto de inclusão digital para uma área periférica. Esse será o início de uma relação conflituosa e desigual entre o poder de exploração da miséria e a luta pelo direito à cidadania, onde a vida é tratada com banalidade e a sentença de morte alcança o embate entre o silenciar o grito dos injustiçados e a sobrevivência.

Numa riqueza de denúncias, vários aspectos são abordados em “Quanto vale ou é por quilo?”, são personagens do cotidiano da sociedade brasileira, empresários, políticos, laranjas, trabalhadores e desempregados. Entre os personagens, discute-se superfaturamento, empresas fantasmas, políticos corruptos, lavagem de dinheiro através dos projetos sociais, a atuação de instituições sem fins lucrativos e a exploração da miserabilidade humana para promover a idéia de solidariedade.

Nesse sentido, pode-se utilizar o filme para discutir o papel do terceiro setor na sociedade contemporânea, num momento em que os países ricos marcam reuniões para decidir sobre os investimentos a serem aplicados nos países pobres, e em que o governo brasileiro amplia os investimentos voltados para a população de baixa renda, especialmente com recursos públicos, geridos por entidades do terceiro setor.

No Brasil, o terceiro setor é o que mais vem crescendo nos últimos anos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, entre os anos de 1996 e 2002, as Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos, cresceram 157,0% e entre 2002 e 2005 22,6%, chegando a esse último ano, quando do lançamento do filme, a um total de 338 mil instituições.

O Nordeste é a Região que integra o maior número de instituições em defesa dos direitos e interesses do cidadão, num total de 38,9%. Levando-se em conta que a mesma também integra a região com maior desigualdade social, onde os mais ricos têm um gasto per capita de R$ 1.600,00 e os mais pobre de R$ 138,00, segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares – POF, 2002-2003, do IBGE, observa-se a relação direta entre a atuação dessas instituições com o índice de pobreza, e desses com a possibilidade de intermediar um diálogo com o filme.

É importante ressaltar que as discussões que envolvem o uso de instituições do terceiro setor, como as ONGs, como fachada para enriquecimento ilícito, não pode desconsiderar a seriedade com que algumas exercem o seu papel e a importância dessas para a população de baixa renda.

É possível constatar que as entidades que integram o terceiro setor movimentam a economia brasileira com a geração de empregos, onde segundo uma pesquisa realizada pelo IBGE (2002), em parceria com o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a ABONG (Associação Brasileira de ONGs) e o GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), gira em torno de 1,5 milhão de empregos assalariados.

Por outro lado, outra forma de trabalho nesse setor é o voluntariado, onde segundo o IBGE, o Brasil contava em 2005 com mais de 19, 7 milhões de voluntários, dentre os quais 53% de homens e 47% de mulheres. Nesse aspecto, o filme aborda a forma como algumas empresas podem usufruir arbitrariamente dessa ação de solidariedade, como forma de reduzir as despesas da empresa, por não necessitar pagar direitos trabalhistas.

Em função desse crescente índice, no ano de 1988, o então presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei nº 9.608/98, onde estabeleceu as diretrizes para determinar o que seja voluntariado e diferenciá-lo da relação trabalhista.

Mais uma questão que exige do expectador um olhar especial, diz respeito ao sistema prisional brasileiro, onde as celas lotadas são comparadas aos navios negreiros, com o questionamento sobre o valor pago pelo Estado para manter seu sistema carcerário. Mais uma analogia com o sistema escravagista, sendo abordado que neste se mantinha os escravos para se obter trabalho de graça e o que existe atualmente são escravos sem dono. Uma frase citada no filme pode contribuir para uma análise mais profunda: “O que vale é ter liberdade para consumir”.

O diretor passa a trabalhar com duas situações que irão se entrelaçar. Num primeiro momento, um jovem luta para manter sua família e os desejos de consumo, contudo o desemprego não lhe permite sustentar dignamente os seus, deixa-lhe a opção de tornar-se um matador de aluguel, numa de luta de pobres contra pobres, a favor de uma classe média. Tal quadro passa a estar intimamente ligado ao período da escravidão, onde pobre e negros forros tornavam-se capitães-do-mato, caçadores de escravos. A imagem de uma escrava grávida, caçada e entregue ao seu senhor, onde aborta; com o dinheiro da recompensa o algoz pode criar seu filho com “liberdade e dignidade”, uma adaptação do conto de Machado de Assis.

A riqueza com que o filme trata das diversas situações que envolvem os problemas sociais, faz surgir um quadro onde pessoas são capacitadas para trabalhar com projetos sociais, ensinando como alcançar a captação de recursos das empresas, de acordo com seu interesse de mercado, de promoção social – a venda da imagem de empresa socialmente responsável. É preciso lucrar de forma “responsável”.

Num dinamismo crescente, o preço pago pelo detento, vivido pelo ator Lázaro Ramos, para sua fuga, torna-se a mola propulsora para o sequestro do empresário que lucra sobre a miséria de sua “comunidade” periférica. Nessa situação, vários questionamentos são apresentados pelo personagem: “Qual é a nossa parte nos teus lucros?” – O desespero faz as coisas andarem mais rápido, sabia?”, além de uma afirmação que exige um olhar mais apurado sobre a distribuição de renda, a quem cabe tal distribuição e quais as conseqüências de sua ineficácia: “Seqüestro não é só captação de recursos, é também redistribuição de renda”.

O filme culmina com a morte da mulher que luta para que a população que enfrenta preconceitos de todas as espécies e que habita a periferia, numa luta constante de sobrevivência, não seja produto de lucro para instituições inescrupulosas. Seu matador, um jovem desempregado. Finalmente terá dinheiro para sustentar seu filho, “alimentá-lo e educá-lo com dignidade e liberdade”, além de satisfazer os desejos de consumo de sua família.

“Quanto vale ou é por quilo?”, um filme que exige um olhar mais apurado sobre os fatos abordados. O tempo inteiro existe uma provocação, uma intenção que pode ser interpretada de acordo com situações variadas. Não existe um final. As situações abordadas continuam existindo na nossa sociedade, ao nosso lado, ou até mesmo fazendo parte dela.

Nesse sentido, a exploração didática do filme abre diversas possibilidades de envolvimento, quer seja através de um debate, da relação deste com a formação da sociedade brasileira, com a presença de instituições sem fins lucrativos na periferia do lugar onde se vive, inclusive de instituições universitárias e o papel destas na transformação da realidade local.

Não perca a oportunidade do desafio lançado num filme que retrata a realidade da sociedade brasileira, sem pieguices, apenas com a imagem do mundo que te certa.

Aceite a provocação!

- A presente resenha foi publicada na Revista CABANOS, do Núcleo Argonautas, da Universidade Estadual de Alagoas - UNEAL.

LEITE, Angela. M. A. Quanto Vale ou é por Quilo?. In: Caetano, Antônio Filipe Pereira; Mello, Janaina Cardoso de.. (Org.). Revista Cabanos. 5 ed. Maceió/AL: , 2008, v. 1, p. 125-133.

Angela Leite
Enviado por Angela Leite em 26/04/2009
Código do texto: T1561052
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