Interpretação direcionada

Na vida em sociedade, as ideias, as opiniões, os fatos, os objetos não são avaliados isoladamente, mas dentro de um contexto que lhes atribui um significado, um valor e uma qualidade previamente determinados. Envolvidos pelo consenso, os valores sociais são modificados em função de cada época. Não faz muito tempo, por exemplo, que o trabalho doméstico e o cuidado dos filhos eram considerados tarefas exclusivamente femininas. Atualmente isso não mais acontece, pelo menos nas grandes cidades. Um pai alimentando o filho com auxílio de uma mamadeira é observado com simpatia e aprovação.

O comportamento sexual é outra área em que se nota grande mudança. Até meados do século passado, a sociedade exercia um controle bastante rígido sobre a sexualidade das pessoas, especialmente com relação às mulheres. Em geral, o sexo era aceito exclusivamente dentro do casamento, e valorizado apenas quando tinha por finalidade gerar filhos. As mulheres que não se comportassem exatamente de acordo com esses valores eram mal vistas e sofriam uma série punições sociais. Embora lentamente, esses valores foram sendo alterados.

Isto não é diferente com relação à arte, a sua percepção e interpretação. A sociedade, têm uma série de regras de “conduta interpretativa”, que orientam e controlam a forma de percepção individual, são as chamadas normas sociais. Em função do que está socialmente estabelecido, como concluiu Pierre Bourdieu, essas normas indicam uma lógica sociológica, na atribuição do valor a obra de arte.

Ao analisar o Renascimento, percebemos que estava ligado a uma determinada parcela da população da Europa - a burguesia. Classe que era formada por comerciantes que tinham como objeto principal o lucro, através do comércio de especiarias. Que conquistou não apenas novos espaços sociais e econômicos, mas também procurou resgatar ou fazer renascer antigos conhecimentos da cultura greco-romana.

A burguesia não só assimilou esses conhecimentos como, ainda, acrescentou outros, ampliando o seu universo artístico. Desde a sua origem, ela se preocupou com a transmissão desse conhecimento aos seus filhos. A partir daí, então, foram surgindo instituições como as universidades, as academias, entre outros. Com o passar dos séculos e com o processo de escolarização, a arte da elite burguesa tomou corpo, desenvolveu-se com base em técnicas racionalizadas e cientificas.

Essa arte “erudita” ou superior”, também componente da arte “de elite”, foi se distanciando da arte da maioria da população, pois era feita pela e para a burguesia.

A arte “popular”, por sua vez, mais próxima do senso comum e mais identificada com ele, é produzida consumida pela própria população, sem necessitar de técnicas racionalizadas e cientificas. É uma arte em geral transmitida oralmente, registrando as tradições e os costumes de um determinado grupo social. Da mesma forma que a cultura erudita, a cultura popular alcança formas artísticas expressivas e significativas. Este fato pode ser comprovado no documentário: Pastinha uma vida pela capoeira, digido por Antonio Carlos Muricy.

O filme trás demonstrações e conceitos sobre a capoeira, como componente de uma das mais ricas manifestações culturais brasileiras. O antropólogo Carlos Eugenio Queiroz, diz que “a capoeira nasceu no Brasil, mas foi gerada por africanos, portanto é afro-brasileira”. Dentro da analise “popular”, da sensibilidade de percepção, a capoeira é considera uma forma de arte. Para o Mestre Curió, aluno de Vicente Ferreira Pastinha - o Mestre Pastinha, pai da Capoeira Regional - , é preciso ter sensibilidade, dar valor as tradições culturais transmitidas pelos seus antepassados, para praticar e ensinar esta arte, que engloba a “malícia” e “a mandinga”.

A capoeira para aqueles que a pratica e que simpatizam é considerada arte. Contudo, ela não se encaixa nas normas que convencionam as manifestações culturais como arte. Por conta disto, o reconhecimento desta prática com arte no Brasil é quase que inexistente dentro de um contexto mais geral. Ela não é apreciada nem ao menos como uma riqueza cultural. No filme, isso pode ser percebido dos depoimentos de desabafo da esposa do Mestre Pastinha e de Mestre Curió, que lamentam o não reconhecimento do valor que tem a capoeira, como “arte (dança, mandinga, malícia, educação, disciplina)”.

Por outro lado, o filme mostra o Mestre João Grande - também aluno de Pastinha-, tendo seu trabalho reconhecido nos Estados Unidos, talvez não como arte, por ser uma realidade bastante distante no sentido cultural, mas que trás uma lição de que é possível observar e apreciar outras culturas que estão abertas a várias interpretações.

Dentro da fenomenologia, que procura analisar “as coisas” em sua verdadeira essência, a capoeira pode ser considerada arte, porque há um quê de “sagrado oscilando indefinidamente do ponto de vista do sujeito ou do objeto, entre o numinoso e sentimento numinoso”. Esta visão ultrapassa a visão formalista, na qual o reconhecimento da capoeira como arte só se daria a partir de conceitos atribuídos a ela por uma elite e/ou se seguisse às normas convencionais desta.

Partindo da analise de Pierre Bourdieu, a capoeira não pode ser considerada uma arte apenas por um gosto estético pessoal, fora das normas convencionais, pois para ele estas são mais “importantes”, dentro da designação do que seria ou não arte. Para Bourdieu, existem alguns requisitos para a apreensão e para a percepção da obra, requisitos os quais, eles próprios, fornecerão as chaves para poder decifrá-los. No sentido de que apreender e perceber a obra de arte dependem não só da intenção do espectador, como também da capacidade que o observador tem de entender e aceitar tais normas, isto é, da sua competência artística.

Dentro deste aspecto, podemos perceber o surgimento de um problema: como entender os diversos graus de socialização já que as pessoas são diferentes, por isso têm opiniões diferentes, apreendem uma norma social de maneira desigual e portanto vêem e entendem os objetos de acordo com suas possibilidades e limitações? Por isso, é possível apoiar e acreditar na capoeira como arte, partindo do pressuposto de que um grupo social – mesmo não tendo relevância dentro da sociedade – a considera, por meio de um contato, de uma sensibilidade. Mas, voltando ao raciocínio de Bourdieu, que diz:

“... a única maneira de tratar a percepção propriamente estética da obra de arte, ou seja, a percepção considerada a única legitima em uma dada sociedade, consiste em abordá-la como um fato social cuja necessidade deriva de uma instituição arbitrária...”

Para ele, quando algum objeto é designado como digno de ser atribuído o status de obra de arte, observa-se que algumas instituições são investidas de uma certa autoridade e de um certo poder de impor um arbitrário social, cultural. Com a família, a sociedade, a faculdade, pelas suas participações no processo de socialização do individuo. Desta forma, mais uma vez a capoeira só poderia ser considerada arte na analise de Bourdieu se fosse encontrados pontos específicos, traçados por convenções das instituições descritas no período anterior. O que envolveria a transformação do modo de produção artístico, que é legitimado com o passar do tempo pelas instituições sociais.

De repente, a elite pode se considera a “boazinha” por reconhecer na capoeira algum “tipo de arte”, mas isso é mais questão de conveniência. Dentro do conceito do autor, é relativo, uma vez que, ela cria então novos conceitos para algo que já possui especificidades culturais históricas, com significados também específicos. Isso se aplica ao fato dele tratar a arte como um bem simbólico, que só existirá para aqueles que possuírem os meios para sua apropriação, isto é, só se constituirá em bem simbólico para os que detiverem o código de interpretação do bem em questão. Estes que como já foi dito, são construídos historicamente e reconhecido socialmente como condição de apropriação simbólica.

Isto ocorre quando se coloca as rodas de capoeira como atração turística e há relação capitalista neste processo, no filme se fala sobre está situação, quando no pelourinho, empresas de turismo exploram, o que seria apenas uma manifestação cultural de um grupo social - arte.

Portanto, voltamos ao que foi dito no inicio, a partir do que foi dito em relação a capoeira, e a que se concordar com Bourdieu. As camadas mais altas da sociedade, as quais trazem para si o direito exclusivo de decifração dos códigos, além de fazerem da prática de julgamento, propriedade única sua entre o é bom e o que é ruim, entre o que é erudito e popular, fazendo uso de instrumento cada vez mais escassos nas camadas mais baixas, para construir um modelo legítimo, por ser cada vez mais raro e por isso mais seleto. Porque o capital cultural retorna a mão do capital cultural e o monopólio desses códigos significa o monopólio da cultura local.