Tempo perdido Antes do Pôr-do-Sol

O Tempo Perdido Antes do Pôr-do-Sol

Sempre tive medo de assistir “antes do pôr-do-sol”. Bom, todos devem saber que se trata da continuação de “antes do amanhecer”, filme de Richard Linklater, onde um jovem casal (Jesse e Celine) se conhece em meio a uma viagem pela Europa, decide passar junto suas últimas horas em Veneza e, ao final, prometem que dentro de seis meses se reencontrarão no mesmo local. Neste, se dá o tal reencontro, mas não exatamente como o combinado.

Em “antes do amanhecer”, em meio aquele infindável diálogo – verborragia, incrível e, ainda que se possa dizer superficial e cheios de lugares-comuns diante de um Proust, por exemplo, atinge certamente uma profundidade enorme se comparado à maneira como se dá a maioria das cantadas ou primeira aproximação de um casal qualquer – a cena que mais me comovia era uma em que não se dizia sequer uma palavra.

Quase no final do filme, a câmera pousava suave sobre os lugares, já impregnados da luz do nascer do dia, que os personagens haviam estado. Havia uma música, se bem me lembro, tocada ao piano, ao fundo. Aquilo me fazia sentir meio triste no começo. Quer dizer, eles só tinham passado alguns minutos em cada um daqueles locais, mas algo deles havia ficado ali pra sempre (?) e algo deles havia se perdido ali pra sempre (?).

Depois, a mesma cena passou a me confortar. Alguma coisa de todos aqueles locais tinha ficado com cada um deles também e era interessante pensar que um pedaçinho qualquer de Veneza pudesse estar, de repente, escrevendo um livro, lutando por justiça social, lavando louça, fechando grandes negócios, casando-se, tendo filhos, atravessando uma rua, fazendo sexo sabe-se lá por onde com outros milhares de pedacinhos de lugares que os outros trazem consigo...

Sempre pensava nos lugares que carrego comigo quando revia aquela cena – nos lugares e nas pessoas que carrego comigo – e sabia naquele momento, com toda a certeza que eles estavam comigo. E por isso tinha medo: medo de que o segundo filme pusesse isso em dúvida.

Enfim... Outra coisa que sempre passou pela minha mente quando assistia o “antes do amanhecer”, entre tantos outros absurdos, era em como uma escolha boba como ter dobrado numa e não noutra esquina num dia qualquer há anos atrás, pode ter sido decisivo e fundamental para o como se está hoje em dia. Qual a importância de calçar este ou aquele sapato, pôr no som hoje este ou aquele cd, persistir, desistir, aceitar ou não um convite, fazer ou não uma promessa?

As promessas, as metas, os desejos, as opiniões, os sonhos... quanto tempo duram? Tenho um amigo que conheceu uma pessoa em Porto Alegre durante uma viagem. Ambos assistiram o primeiro filme e, como eu e muitos (creio), eram encantados por aquele romance. Era pela época do lançamento da continuação e parece que queriam, mas não puderam assisti-la (não sei bem a história, mas...). Então, ambos fizeram a promessa de somente assistir o filme se fosse em companhia um do outro. O fato é que, desde então, um país inteiro os separa e não sei se eles já assistiram... Mas deveriam...

Nem sei por que lembrei disso... Cabe tanta coisa dentro cada um... De cada segundo vivido, nunca se sabe o quanto fica e quanto se perde. Imagine a quantidade de coisa pra pôr em dia ao se rever alguém de quem não se tinha notícias há nove anos, por exemplo. E imagine o quanto ficará por ser dito... seja por não ser conveniente; por pensar que o outro não achará interessante, mesmo sendo essencial pra você; por trauma; por querer disfarçar o que realmente se sente; por falta de tempo...

Uma tarde é muito pouco tempo pra recuperar o tempo perdido... Proust passou cerca de treze anos, (sendo que 3 dos quais, os 3 últimos de sua vida, trancafiado num quarto) perdendo e tentando recuperar o tempo de uma vida e, mesmo tendo escrito a sua maior obra (Em busca do Tempo Perdido), creio que se lhe fosse perguntado, ainda assim o diria: não deu.

Muitos são os lugares, as pessoas, as promessas, os ideais, os sonhos e é possível que eles até fiquem em nós. Porém, talvez nós é que não fiquemos. O tempo passou pelos personagens e os lugares e, os personagens e lugares, pelo tempo, como em Proust.

Proust, também ele, passou, se foi. Nós sempre estamos indo... e assim as coisas vão (também)... e ficam, repetindo-se em algum lugar (onde?).

Não sei... Já é a terceira vez que o letreiro desce aqui na tv, a música teima em dar agulhadas no peito, é a segunda garrafa de vinho, há uma lágrima ancestral sufocada aqui dentro e um sorriso que não sei explicar e, mesmo diante de tanta conversa que Jesse e Celine têm pra pôr em dia enquanto caminham por Paris, eu ainda não tenho palavras pra dizer qualquer coisa sobre “antes do pôr-do-sol”.

Harley Dolzane
Enviado por Harley Dolzane em 01/08/2006
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