Sobre paradigmas, “Legião” e o Juízo Final

Conversava sobre paradigmas com uma nova amiga, a Professora-Mestra Joseilma Ramalho, da LUSOFONA – Universidade de Humanidade e Tecnologia de Lisboa. Conversando sobre paradigmas, então, debatíamos sobre a conseqüente possibilidade de "quebras" ou de mudanças de alguns deles.

Ela dá palestras sobre o assunto a estimular pessoas a verem a Vida, o mundo, elas mesmas e outras pessoas de formas diferentes das convencionais, com o propósito de ajudá-las a superar certos sofrimentos, ocasionados pela manutenção de preconceitos e, a partir deles, de comportamentos estereotipados – quem sabe a desenvolver melhores condições gerais de vida individual e coletiva – a despeito de que considerável parte da população mundial não esteja muito interessada em desenvolver pensamentos críticos de qualquer espécie, principalmente se ameaçam lhe tirar de certas cômodas situações conquistadas no fundamento ilusório de que, graças ao que elas cultuaram como o “mais valioso” na Vida, construíram para si e suas famílias a lhes pôr “em total segurança”.

Quando falo sobre paradigmas e suas quebras, inevitavelmente menciono como determinantes a elas o pensar e o agir de artistas como eu, sendo os cineastas, para mim, auxiliados por outros produtores de outras vertentes das artes, os mais atuantes no processo de denunciar preconceitos a tentar nos tornar cientes deles a nos fazer procurar superá-los.

Entre as muitas histórias que levam às telas de cinemas, as mais fantásticas – ou, melhor dizendo, as mais superficialmente reconhecidas como “mentirosas” – são as que frequentemente mais me atraem, não apenas porque tecnicamente dão mais trabalho para serem realizadas, mas porque a Fantasia é um dos recursos metaforicamente essenciais para que, de forma lúdica, os artistas possam dizer grandes fatias descobertas da Verdade.

Entre as belas “mentiras” produzidas com auxílio da arte do Cinema, por exemplo, o filme “Legião” me chamou atenção por sua natureza herética mitológica bíblica, embora já outros como “Dogma”, “O Corpo” e “Stigmata” tenham feito profundas incursões sobre o tema.

No âmbito das contendas religiosas, os heréticos são os responsáveis pela quebra de grandes paradigmas da fé, os chamados “dogmas”. Ao longo da história, quem os contestou experimentou perseguições e mortes violentas por parte da igreja católica, embora não apenas ela tenha provocado o inferno na vida de heréticos, ou daqueles que optaram não aceitar determinadas “verdades eternas” por ela estabelecidas.

Mas, embora a igreja católica haja abolido o grupo daqueles que compuseram a chamada “Santa” Inquisição, relatos de integrantes e ex-integrantes de grupos que dizem pertencer à igreja católica, como a TFP e o Opus Dei, por exemplo, ainda hoje reclamam de perseguições – como talvez para sempre aqueles que contestam os ditos de Alá serão passíveis de perseguições e mortes, entre outros heréticos contestadores de outros dogmas não tão populares como os cristãos ou os muçulmanos, atualmente muito comentados, sendo o Hinduísmo a mais tolerante das religiões existentes na Terra (sic).

Escrito, produzido e dirigido pelo herético Scott Charles Stewart, portanto, “Legião” conta uma história do resultado global da famosa e temida “ira de Deus”. O filme começa com uma citação bíblica, encontrada no Salmo 34:11, e a fala de uma das personagens que, sobre cenas que retratam uma paisagem desértica, desoladora, nos diz: “Quando eu era criança, minha mãe me lembrava toda noite, antes de dormir, de abrir meu coração para Deus, pois Ele era bom, misericordioso e justo. As coisas mudaram anos depois, quando meu pai foi embora, deixando-a para criar a mim e meus irmãos em um lugar à beira do Deserto Mojave. Ela nunca mais falou sobre o Deus bom e misericordioso. Porém, falou sobre a profecia. Do tempo em que o mundo todo seria tomado pelas trevas e o destino da humanidade seria decidido. Uma noite, finalmente tive coragem de perguntar a ela porque Deus havia mudado e estava tão irado com Seus filhos. ‘Não sei’, disse ela, arrumando o cobertor ao meu redor. ‘Acho que Ele se cansou de toda essa besteira’”.

Na cena depois da abertura, em Los Angeles, a “Cidade dos Anjos”, no dia 23 de dezembro de um ano incerto, um ser despenca do céu enluarado caindo sobre uma poça de lama num beco escuro. Ele é o anjo Miguel e vem com a missão específica de evitar que Deus e Seus outros anjos, chefiados pelo anjo Gabriel, destruam a humanidade (sic).

Com auxílio de uma adaga especial, ele se livra de suas asas e se liberta do jugo de uma auréola de metal, posta em seu pescoço como as coleiras que usam os cachorros – não aquele estereotipado anel dourado a flutuar acima da cabeça, signo de iluminação, como mandou pintar em seus santos e anjos a igreja católica – e então começa sua jornada na Terra em busca de proteger uma criança que, filha de uma garçonete, está predestinada a ser o novo messias salvador.

Já em menos de cinco minutos de filme muitos mitológicos paradigmas são quebrados.

Uma das características da quebra de um paradigma é que ele é superado inevitavelmente pondo-se outro em seu lugar, tendo em vista que todo conceito é a representação de um paradigma, e vice-versa. As revoluções conceituais que o filme nos apresenta automaticamente oferecem outras formas imagéticas representativas de avaliações dos mitos aprendidos ao longo de nossa formação cristã católica. A velha idéia que fizeram dos anjos nos dizem que eles têm asas, e então Scott Charles Stewart não prescinde delas ao nos apresentar seus anjos (mesmo porque, com elas, os anjos distinguem-se dos homens comuns que, sob o jugo de suas vãs preocupações terrestres, são de natureza pesada demais para exercícios de vôo). Mas o título de sua obra, “Legião”, embora um termo bíblico que designa os poderes das “forças do mal”, nos diz das fontes de suas inspirações a imaginação da função de seus mensageiros celestiais e suas indumentárias: eles não são cobertos por “puras vestes brancas”, como os anjos que conhecêramos a ilustrar bíblias e igrejas, mas trajam aqueles uniformes de guerreiros que lembram os dos soldados dos Césares.

O que Scott quis dizer com isso? Que o império Romano intuíra as vestes angelicais a inspirar seus modistas a produzirem os uniformes de suas legiões como representações dos poderes absolutos celestiais, ou que, pelo contrário, Deus inspirara-se no império Romano a ordenar a forma de se vestirem seus anjos-guerreiros?

Considerando que “tudo tem um significado” – e principalmente aqueles produtos da Arte que, inclusive, já deu aos artistas a tarefa de significar "nada querer significar" – enquanto Gabriel usa ainda uma espada e suas afiadas asas como armas, seu ex-companheiro Miguel abdicou das penas, quer aquelas que constituem a superfície do corpo das aves, quer daquele sentimento humano irmão da piedade. E então ele não está disposto a abrir mão de, infligindo duras outras penas aos divinos convocados exterminadores da humanidade, usar modernas armas pesadas para eliminar anjos que, inicialmente encarnados a se disfarçarem de seres humanos (sic) – sejam crianças, homens, mulheres ou velhos, que ele mata impiedosamente – se reúnem a capturar e eliminar aquele menino-esperança prestes a renascer, razão da divina “indesejada” possibilidade de continuidade da vida pré-humana sobre a Terra.

No meio de toda essa revolução, entretanto, para manter paradigmas de tradições sobre a natalidade do messias cristão, Scott Charles Stewart inventa que Ele é o filho de uma garçonete que, a despeito da grande libertinagem sexual reinante no mundo, talvez ainda seja uma virgem – já que apresentada a nutrir em seu interior uma criança gerada artificialmente em seu útero numa clínica de inseminação. Por amor a uma irmã com problemas de gravidez, a garota cede seu corpo à geração de seu sobrinho.

Embora comparado ao sacrifício da “virgem” Maria em seu tempo, quando sábia colaboradora do trágico destino de “seu filho” Jesus Cristo, a garçonete grávida, apesar de fumante e um tanto depressiva (sem que sua tristeza tenha algo a ver com a guerra que enfrentará pela frente), demonstra atitudes amorosas suficientes para convencer o anjo Miguel de que, junto com um rapaz que a ama incondicionalmente – que, como o carpinteiro José, tem com ela sonhos premonitórios, alguns tão ruins que ele preferiria não dormir de novo – a condição sentimental dela e dele é razão suficiente para que, segundo avaliações do anjo caído Miguel, a humanidade (sic) seja poupada de um juízo e de uma condenação final. E então será sua tarefa trair seus angelicais compatriotas e mostrar ao seu Deus a validade de sua disposição a Lhe dar mais um exemplo de sacrifício pela continuidade de Seu quase falido "Projeto Humanidade".

Com seu intento de quebrar paradigmas, e ter conseguido, o filme de Scott Charles Stewart foi realizado ao mesmo tempo para reforçar muitos outros tradicionais estereótipos de valores por séculos e séculos cultuados pela cristandande. Assim, a despeito de suas heresias, não duvido que o filme possa mesmo vir a agradar o papa Bento XVI, tanto quanto a outros amantes do Fantástico.