As sete faces do Dr. Lao

Fui criado com artistas e, claro, entre artes. Entre elas, experiências naturais cinematográficas aconteciam em noites, quando no terraço da casa de minha avó, tendo eu então uns oito anos a observar as sombras produzidas pelas luzes dos carros atravessando os galhos das árvores na rua. Elas traziam para a parede um desfile de sombras que me faziam imaginar passando cavalos entre árvores de uma floresta cheia de pássaros, que logo mudavam para um grupo de nuvens escuras que, de repente, se transformavam em rostos, sorrisos, outras paisagens...

Mais tarde – depois que fizera uma viagem através de um filme num cinema (onde, com uns cinco anos, entrei pela primeira vez com meu pai num fim de tarde e saí à noite, sem entender como tinha dado a volta ao mundo em oitenta dias sem sair do lugar) – finalmente aprendi com meu pai como se processa a mecânica da produção de imagens em movimento.

Entre as muitas obras que vi, as de Charles Chaplin são provavelmente o melhor que alguém já conseguiu realizar na época do cinema mudo. Como a Poesia é a essência da Literatura, o cinema mudo é substancialmente a representação da essência do Cinema, tendo o velho “Carlitos” reclamado da tecnologia que disponibilizou inserção de sons nos filmes, sugerindo que a presença do som “mataria” o Cinema.

Hoje, Chaplin, também músico, provavelmente concordaria com os avanços da composição sinfônica como reforço dramático a obras cinematográficas, ou a invenção dos novos computadores e programas que possibilitaram efeitos imagéticos e sonoros infinitos à feitura da arte que, considerada a sétima, materializando a imaginação apoiada em estética hiperrealista, é a que mais tem expressado com fidelidade a visão dos sonhos e da imaginação dos artistas.

Entre as grandes histórias que influenciaram minha formação pessoal, a do filme “As sete faces do Dr. Lao” é uma das inesquecíveis. Revi algumas cenas do filme no YouToube – estando a cena de abertura do filme entre os vídeos reunidos em minha página do Orkut – e recentemente o revi em dvd, tendo ficado com nó na garganta ao lembrar do tempo em que vi o filme pela primeira vez.

Com a exuberantemente bela Barbara Eden (atriz de “Jeannie é um gênio”, por quem, apaixonado na infância, eu chorava de saudade ao acordar depois de ter sonhado a noite com ela) e com o genial Tony Randall - que faz ao mesmo tempo o papel do Dr. Lao, do Mago Merlim, do mitológico Pan, do Abominável Homem da Neve, da Medusa, da Serpente gigante e de Apolônio de Tiana, todos atrações do circo do Dr. Lao - o filme, produzido em 1964, quando tinha eu três anos, usou em algumas cenas superposições de animações produzidas com pincéis e bonecos. Um primor como lição do que pretende nos informar sobre as riquezas da Vida a sabedoria oriental, cultuada pelo Dr. Lao como o que se pode possuir de mais valioso no mundo; aquela mesma que reconhece toda vida como nada além da manifestação de um milagre, buscando nas considerações mais simples o fundamento daquilo que desenvolverá a sapiência ideal.

Para semear certa dose de sabedoria em algumas pessoas de Abalone, lugar imaginado para a trama, o filme narra história de um chinês que diz ter 7.322 anos, o Dr. Lao, que chega numa pequena cidade poeirenta do velho oeste para por num jornal o anúncio da temporada de dois dias de seu circo na cidade. Rapidamente – se é que de fato já não sabia, como parece saber tudo – ele constata que o lugar é dominado por um poderoso rancheiro que, sabedor da instalação de uma futura estrada de ferro, que atravessará o lugar a trazer maior desenvolvimento material, como todo espertinho capitalista, quer comprar as propriedades de todos a preços irrisórios a fim de ter lucros fenomenais.

Entre o diálogo do personagem rancheiro e o prefeito da cidade, entretanto, que acontece numa reunião com os moradores, ficamos sabendo que Clint Stark, o rancheiro, antes de ser egoísta e perverso como parece, era um homem bom e idealista.

“Eu acho que Cunningham não vai aparecer” – diz o Prefeito para o rancheiro, sendo Cunningham o jovem e perseguido jornalista que denuncia suas más intenções e suas perversidades em seu tablóide.

“Por que não?” – pergunta o rancheiro.

“Por que ele não quer perder” – diz o Prefeito. “E quem quer”?

“Eu quero”, revela o poderoso rancheiro. “Prefeito Sagen”, diz ele: “toda vez que aposto na fraqueza, na corrupção e infalibilidade, eu quero perder. Mas eu sempre ganho”.

No final, como prevê uma das atrações do circo do Dr. Lao, o cego profeta Apolônio de Tiana, o rancheiro terminará mesmo por receber uma boa recompensa, embora seu ganho não seja bem aquilo que ele estava esperando receber – o que acontece também com certos moradores da cidade que, convivendo com as atrações do circo do Dr. Lao, terão experiências reveladoras sobre alguns de seus mais íntimos sentimentos e sobre aspectos de seu futuro. Como aquela senhora solteirona que, saltitantemente bajuladora, um tanto insanamente sorridente, vai consultar-se com “o cartomante” Apolônio pra saber sobre como será o resto de seus dias, sendo o discurso do profeta composto pelas mais duras palavras que alguém pode usar à expressão nua e crua da verdade.

“O futuro sempre é absurdo até se tornar passado”, diz Apolônio, e depois, pressionado pela curiosa senhora, que exige que ele lhe diga a verdade, lembrando-lhe ter ela pago o preço exigido de cinco centavos para isso, o profeta lhe diz: “Amanhã será como hoje e o depois de amanhã será como anteontem”, revela. “Vejo os dias que lhe restam como uma tediosa coleção de horas cheias de vaidades inúteis. Não terá novos pensamentos e esquecerá os poucos que conheceu. Vai se tornar mais velha, mas não inteligente. Austera, mas não mais digna. Não teve filhos e sem filhos permanecerá. A docilidade que comandou em sua juventude, essa estranha simplicidade que atraiu os homens para você, não perdurou e não vai recapturá-la” – revelações a que a decepcionada senhora retruca, horrorizada, chamando Apolônio de “homem horrível e mesquinho”.

“Muitas vezes os espelhos são mesquinhos e feios”, lhe diz então Apolônio, impiedoso: “Quando morrer, será enterrada e esquecida, e isso é tudo. E por tudo de bom ou mal, criação e destruição que sua vida possa ter conseguido, você poderia muito bem jamais ter vivido”.

Um breve silêncio se estabelece no ambiente, enquanto a chama de uma tocha que o ilumina subitamente enfraquece depois de, no começo da conversa, ter-se fortalecido.

“Sinto muito”, finaliza Apolônio, “mas é minha obrigação dizer a verdade absoluta”.

A mulher sai chorando em desespero, mas depois, quando encontra a personagem de Barbara Eden – uma recatada e cortejada bibliotecária viúva, que se encontrará com o deus Pan e sua música a provocar manifestação de seus mais secretos desejos – ela lhe aconselha a não ir à tenda de Apolônio, revelando-lhe, todavia, num exercício um tanto útil de auto-engano a restaurar sua falsa alegria de viver, que o profeta lhe garantira poder conseguir o marido e o dinheiro que ela almeja para sua felicidade.

Ainda poderia lhe dizer muito mais sobre o que aprendi com o filme “As sete faces do Dr. Lao”. Ele não deve ser um filme muito fácil de encontrar por aí, mas se você tiver sorte poderá usufruir com a família de sua singeleza poética e de toda simples sabedoria contida numa das obras primas clássicas do Cinema fantástico norte-americano.

Para mim, o filme deu a oportunidade de me sentir voltando ao passado a saber mais intensamente sobre todas as boas obras de artes que, no percurso de meus 49 anos atuais, influenciariam minha forma de hoje ser, estar no mundo e enxergá-lo, felizmente, apesar de certas persistentes angústias, ainda muitas vezes como nos pediu para vê-lo o alegre sábio Dr. Lao.