“Sintonia do amor” (Sleepless in Seattle)

“Sintonia do amor” (Sleepless in Seattle)

- Afinal, o que ela tinha de tão especial? – indaga a entrevistadora, pelo telefone.

Hanks pensa um pouco, antes de responder com uma pergunta:

- Qual a duração do seu programa?

Outras pessoas estão ouvindo. Numa cafeteria perto de Washington D.C., as garçonetes permanecem ligadas a cada palavra via ondas curtas e a própria Meg (Ryan), que já estava ouvindo no rádio de seu carro, acompanha com atenção o desenrolar das falas. Especialmente a do viúvo e insone Hanks. Minutos antes seu filho de 8 anos ligara para a produção do programa, no intuito de arranjar uma namorada para o pai. Noite de natal sofrendo por um grande amor perdido, barra em qualquer localidade.

Jeff Arch, David S. Ward e Nora Ephron argumentaram e roteirizaram. Nora dirige com a habilidade de quem vislumbrou no papel e colocou para funcionar em set e locações.

Tom Hanks mora numa casa flutuante, toda enfeitada com luzinhas natalinas, ele se debruça no parapeito enquanto uma vistosa embarcação, toda iluminada, passa ao largo e os ouvidos constatam – e irão constatar durante todo o filme, o bom gosto na escolha dos hits. Essa vistosidade toda tem um fim específico – as lentes cinematográficas. Tecnologia pode estar dentro da câmera e nas ilhas de edição, mas, se não houver um senso estético concebendo a “coisa”, tudo vai para o vinagre.

“Sintonia...” é uma história de amor, não sobre a saudade de uma relação acontecida e finalizada tragicamente. Ou, sobre as intempéries de uma relação em andamento. Tampouco estamos falando do amor proibido, que não acontece por impedimentos mil, ou pelo impedimento da vez. “Sintonia...” é uma história de captação, e trata sobre o instante em que aquela coisa tão palpável como uma onda de rádio ou um raio de sol, entra em nossas vidas com o intento de realizar a completude.

Meg funciona como um instrumento a procura da tonalidade certa, desde que ela ouve a entrevista. Detalhe: Meg está noiva. Tem uma relação dir-se-ia fleumática com o asmático e alérgico Bill Pullman. Ambos são aspirantes ao matrimônio quadriculado, onde tudo aparentemente se encaixa, mas a sintonia dela captou alguma coisa ainda indefinível. Noutras palavras, nada se encaixa.

Centenas e centenas de cartas chegam à redação do jornal onde Meg trabalha, mulheres de toda a América querem conhecer o entristecido Hanks de Seattle.

Amor é como eletricidade, ninguém sabe o que é mas todo mundo fala a respeito, com a diferença de que o segundo item está entre nós há pouco mais de um secularium, porém, desde que foi possível registrar alguma coisa para a posteridade, que não fosse via tradição oral, o amor tem sido retratado de tudo que é jeito por ser, justamente, o retrato do que está rolando no período em questão. Para os sectários da câmera na dourada América ousou-se supor que ele pode acontecer antes mesmo que aconteça. No filme, esse conceito é a mola delineadora que propulsa.

As cartas chegam à casa flutuante e Hanks resolve sair do luto. Seu filho administra a correspondência, a própria Meg figura entre os remetentes, mas o viúvo cede a um namorico com a arquiteta que ri como uma hiena, para desgosto do pequeno Jonah, que vai arquitetar um ardil a fim de que o pai encontre o grande amor de sua vida.

Dado momento, o trabalho de Nora faz referência explícita a um clássico romântico dos anos 40 e tal referência também serve para orientar o desenlace final da trama.

Meg esconde do noivo aquilo que ela julga ser, no mínimo, um sintoma de desequilíbrio. Ela se tranca num quartinho para ouvir o programa de rádio e chega mesmo a se deslocar sorrateiramente para Seattle – algo do tipo, se você estiver na Guanabara, de repente se perceber em Macapá, procurando por alguém que nunca viu na vida. Apenas ouviu a voz.

O argumento de Jeff Arch sequer cogita um encontro dos dois para, digamos, “tirar a prova” ou “matar a curiosidade”. A história não é por aí e Hanks desconhece a existência da loira Meg. Ele chegará a vê-la um dia no aeroporto e, dentro do peito, o sino vai tocar. Prova de que o sinal funciona tanto pelo ouvido como pela retina.

Vendo hoje, e talvez em vista do turbilhão áudio visual que tem infestado o planeta nos últimos 20 anos, “Sintonia...” adquire a pecha de batido sem perder o viço. A trilha ajuda bastante. Nat King Cole e Louis Armstrong estão presentes lustrando a melancolia individual de uma dupla que talvez venha a ser um casal. Quando se encontram, nos últimos 5 minutos do filme, nada impede o espectador de pensar: se tudo der certo, ficarão juntos a vida inteira.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 12/05/2010
Reeditado em 14/11/2012
Código do texto: T2252600
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