MORTE E VIDA SEVERINA

Poema de João Cabral de Melo Neto
Filme feito em 1977, escrito e dirigido por Zelito Viana, com música de Chico Buarque. No Elenco José Dumont, Elba Ramalho, Stenio Garcia, Jofre Soares, Fábio Sabagg, Tânia Alves e vários atores nordestinos.

Acabo de voltar de uma viagem ao Nordeste do Brasil. Fui dar uma palestra de PNL em Fortaleza e depois, como tinha tempo de sobra, aluguei um carro e fui dar um passeio pelo agreste, passando por Juazeiro do Padre Cícero, Souza, Patos, Coremas, Campina Grande, já na Zona da Mata, todas na Paraíba. Fui até O Recife, onde deixei o carro e peguei um avião de volta para São Paulo.
Minha falecida esposa nasceu em Coremas. Por isso quis fazer essa viagem. Coremas é um montinho de casas á beira de uma represa, que fica bem perto da divisa Paraiba/Ceará. Parece uma vila saída de um filme de Glauber Rocha ou um romance de Graciliano Ramos. Fui lá algumas vezes quando minha primeira esposa era viva, para visitar os pais de criação dela, Seu Otacílio Rodrigues e Dona Zefinha, gente valente daqueles sertões, que criaram oito filhos, todos formados em medicina, odontologia e magistério. Fizeram isso trabalhando na roça.
Adoro Coremas,assim como amo todo aquele interior. As águas frias da barragem do Piancó. Léguas e léguas de caatinga e arbustos retorcidos, que sobrevivem, sem água, nos magros lábios de areia dos arroios secos. Pequenas cidades e vilas que só continuam de pé, teimosas que são, pois de há muito deveriam ser cidades fantasmas, mortas pela seca e inanição de suas populações.

Enquanto viajava pelos sertões de hoje, revi os sertões de ontem, quando eu costumava vir a Coremas pelo menos uma vez a cada dois anos. É fato que muita coisa mudou nesse caminho. E nessas cidades e vilas também. Bolsa família, escola pública, postos médicos, luz elétrica e água encanada, que antes não havia na maioria desses lugares, agora tem. Se melhorou a vida dessa gente não sei. Não deu tempo para conferir.
Nos anos oitenta, quando eu fazia essas viagens, dava pena de ver. Me lembrava sempre o poema de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina. Assisti o musical que Chico Buarque adaptara para esse poema em fins do anos sessenta, no teatro da PUC. Lembro-me que quando terminou o espetáculo havia uma companhia da Polícia Militar na porta do teatro e uns policiais civis estavam à cata dos produtores, diretores e atores da peça. Éramos, na maioria, estudantes, e ensaiamos um pequeno tumulto que foi dissolvido a cacetadas.
Nos final dos dos anos setenta, ditadura já quase enterrada e seus censores envergonhados, agora trabalhando em jornais e posando de democratas, uma versão do poema com a música do Chico foi adaptada para o cinema pelo Zelito Viana. Eu ainda tenho um VHS dessa produção que gravei na primeira vez que foi levada a tela pela Rede Globo, no início dos anos oitenta. Magnífico trabalho, com José Dumond na pessoa do retirante Severino, Elba Ramalho no papel da rezadora, Tânia Alves no papel da mulher do lavrador, e vários outros atores, alguns globais, mas a maioria gente da região mesmo, em interpretações inesquecíveis.

Severino é o retirante sertanejo que deixa sua terra seca das serras da Paraíba, para ir tentar melhor sorte no literal, no caso o Recife. Para não se perder ele segue o curso do Capibaribe. Nessa jornada ele só encontra miséria, desgraça e morte. Um povo que vive para morrer, um povo que só cultiva os roçados da morte, como diz a rezadora interpretada por Elba Ramalho. E então ele vai, de cidade em cidade, de vila em vila, por simples arruados, seguindo a corrente do rio e vivendo a saga do povo nordestino, feito de Vida e Morte Severina.

Vida e Morte Severina é um dos mais emocionantes poemas da literatura brasileira. E João Cabral de Melo Neto, seu autor, um dos maiores poetas do Brasil. A música de Chico Buarque enriquece o enredo e dá um toque de magia de ópera ao espetáculo. Em cada verso musicado, em cada fala sobressai a dramaticidade da vida do povo nordestino, pressionado pela seca e pela fome, pela morte prematura, pelos conflitos de terra, pela desonestidade dos políticos, que nada fazem para romper esse circulo vicioso de miséria, ou ao contrário, tudo fazem para mantê-lo assim.
No fim da sua jornada, Severino, cansado ver a “morte ativa”, como ele diz, descansa encostado no muro de um cemitério. Ouve a conversa de dois coveiros que reclamam da dureza de seus trabalhos. Descobre então que os retirantes que vem do sertão em busca de vida melhor na cidade, acompanhando o curso do rio estão, na verdade, acompanhando o próprio enterro. E ele resolve enfim apressar esse desenlace. Vai para a beira dos alagados, onde pretende se afogar no Rio Capi-baribe. Depois de um dramático diálogo com um morador da favela ele assiste a uma reunião festiva na favela, realizada em homenagem ao nascimento de uma criança. Vê o quanto aquele povo sofrido, abandonado, faminto e desesperado se agarra à vida, a respeita e a defende, mesmo sendo ela uma miserável vida Severina.
Então toda a esperança perdida na triste e melancólica jornada renasce. E essa é a grande lição dada por esse monumental poema. Seja qual for a vida que se leve, ela merece ser vivida. É a dádiva de Deus ao homem e quem recebe a graça de viver não pode renunciar a ela nem desprezá-la, com a desculpa de que ela é mesquinha.
O meu respeito pelo povo nordestino, que já era grande, foi consideravelmente aumentado ao voltar dessa viagem pelo sertão. Revi Morte e Vida Severina e não pude deixar de ficar novamente muito comovido. Eta gente porreta!


João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 20/02/2011
Reeditado em 20/02/2011
Código do texto: T2803515
Classificação de conteúdo: seguro