A pantera e a quimera

Passado mais de quarenta anos do filme que inauguraria a franquia A Pantera Cor-de-Rosa, a figura do Inspetor Jacques Closeau ainda permanece como sinônimo de desastrado, presunçoso e idiota.

O que contribuiu para isso, além dos inúmeros filmes e da direção de Blake Edwards, foi a atuação fantástica do ator Peter Sellers. Sellers não era um comediante, mas um ator dramático muito versátil, aliás, filho de um casal de artistas do teatro de revistas e do circo. Mesmo assim conquistou o posto, com apoio do público.

Inicialmente, o protagonista do filme de Blake Edwards seria o veterano David Niven como o charmoso ladrão Phantom. Closeau entrava como o cômico personagem secundário. O filme giraria em torno justamente desse desastrado detetive tentando capturar um ladrão e sua misteriosa ajudante, na realidade sua própria esposa, antes que ele roube um enorme diamante conhecido como A Pantera Cor de Rosa de uma princesa indiana, interpretada pela bela Cláudia Cardinale.

Sellers era conhecido por entrar, literalmente, em seu personagem, por isso sua caracterização de Closeau começou ainda no avião que o levaria para Cineccitá, o tradicional estúdio italiano. Inspirando-se num desenho de uma caixa de fósforos, raspou a barba e deixou apenas o bigode e, se os boatos forem verdadeiros, armou o maior barraco no avião no melhor estilo Closeau.

Como seu personagem é francês, e os ingleses costumam ter uma pequena rixa de seus colegas assim como temos de nossos hermanos argentinos, Edwards e Sellers tencionavam criar um personagem caricatural. Utilizaram como base o então presidente da França, Charles de Gaulle, e o sotaque aparentemente incompreensível de alguns atores franceses.

No filme inicial de 1963, Closeau, por conta de um "complô", acaba preso. O sucesso bombástico do filme pelo mundo (incluindo na França) suscitou uma continuação - UM Tiro no Escuro - onde Closeau finalmente volta da prisão para desgosto de seu novo chefe, o inspetor-chefe Charles Dreyfuss, interpretado magnificamente por Herbert Lom. A partir de então, a franquia contará com essa figura, um misto de vilão e vítima, em cenas memoráveis, onde tanto Lom quanto Sellers servem um ao outro como escada para um desfecho cômico inesperado.

No filme, lançado apenas alguns meses depois do primeiro, também surge outro personagem recorrente: Kato, interpretado por Burt Kwouk, o ajudante oriental de Closeau que, á pedido de seu patrão, sempre o surpreende com ataques e golpes de artes marciais. Personagem recorrente também seriam as femme fatales escaladas para desorientar Closeau (Capucine, Cláudia Cardinale, Elke Sommers, Catherine Schell, Lesley-Anne Down e Dyan Cannon, respectivamente).

No tocante ao roteiro havia, no entanto, muitas descontinuidades: o segundo filme se baseou numa peça sobre dois detetives, o terceiro revisitou a trama inicial, enquanto o quarto foi uma paródia aos filmes de espiões, como 007. No quinto, havia uma história crível, mas de certa forma independente dos demais filmes, e finalmente chegamos na espécie de homenagem de Edwards á Sellers (falecido em 1980, sendo que este filme foi feito dois anos depois) com cenas inéditas reunidas em um filme póstumo.

É justamente nesse quesito onde residia a maior birra de Sellers para com o diretor. Segundo o ator, Edwards não tinha talento para a comédia e com isso fazia filmes forçados. Concordo que a descontinuidade é gritante, mas há de se convir que o que o público queria era apenas Closeau fazendo suas trapalhadas. O roteiro pouco importava se o desastrado inspetor estivesse lá; Edwards apenas seguia essa tendência. Quanto á ele não ter talento, há brilhantes filmes seus para desmentir essa tese (como Um Convidado Bem Trapalhão e Victor ou Victoria).

Á essa altura reafirmo as palavras iniciais desse texto: o sucesso da franquia se devia, em grande parte, á atuação de Peter Sellers. Closeau era um palhaço diferente, um palhaço que não ria, um imbecil que mesmo não sabendo o que fazia e falava procurava demonstrar segurança e autoridade toda vez que abria a boca ou começava uma investigação. Além disso, era muito ingênuo, se deixando sempre se levar por belas mulheres e promessas sem fundamento. No entanto, era um idiota que, no final das contas, sempre se dava bem, para infortúnio de seu chefe Dreyfuss.

Claro, é um personagem cativante, seja por se aproximar do perfil de pessoas que conhecemos no dia-a-dia (o imbecil que não sabe o que fala, o ingênuo, etc) seja pelo que pode surgir quando o vemos em ação. A indústria cinematográfica logo percebeu o filão que isso poderia dar e não largou o osso. Naquela época, portanto, já se esboçava a regra de ouro da indústria cinematográfica: se uma fórmula dar certo, explore-a ao máximo.

Atualmente, isso é mais do que visível. A quantidade de continuações e de remakes de filmes de sucesso é patente. Apesar de ser um fã da franquia, tenho de concordar que se Sellers não houvesse falecido ela continuaria por anos a fio até esgotar completamente o personagem.

Mas a indústria cinematográfica, revelando a sua falta de criatividade, decidiu recentemente ressuscitar a franquia com um remake em 2007, dirigido por Shawn Levy e protagonizado por Steve Martin. A idéia de fazer as novas gerações conhecerem Closeau é apenas, como sabemos, um pretexto. E o peso de Sellers ainda é grande, tanto que Martin teve um enorme trabalho para construir um personagem diferente sem trair a sua essência, no entanto, podemos perceber que não há como se escapar de Sellers: aqui ou ali ele repete um pouco de seus maneirismos.

Steve Martin tem um estilo de humor mais escrachado, diferente do "palhaço que não ri" de Sellers. Seu Closeau consegue ser um pouco diferente, mas parece um pouco anacrônico. Não sei se é por causa da natureza do personagem ou da interpretação de Martin. Se a primeira opção estiver correta, a indústria cinematográfica nunca reconhecerá que Closeau teve a sua época e que ela acabou enquanto os lucros não caírem.

A refilmagem teve um relativo sucesso e momentos fortes, mas não conseguiu atingir o sucesso alcançado pelos filmes originais, o sucesso esperado pelos estúdios. Já há uma continuação desse remake e esta ainda não vi, não sei se houve uma mudança significativa nesse filme em relação ao primeiro.

Seja como for, apenas reitero aqui a minha visão: a Pantera foi abençoada e amaldiçoada por seu sucesso. A competência dos envolvidos na franquia nos trouxe momentos memoráveis e lucros exorbitantes para os estúdios. Hoje a quimera da indústria cinematográfica tenta ressuscitar Closeau, mas ainda falta um sopro de vida para completar o processo. Enquanto isso, podemos esperar surpresas, para o bem ou para o mal, da enigmática pantera e da voraz quimera.