“A Casa do Lago” (The Lake House)

Nem com um diagrama, numa lousa negra, ou com um data show hiper moderno explica-se “A Casa...”. Seria o mesmo que tentar explicar uma poesia do Pessoa ou do Andrade. Isso posto, explica-se, “A Casa...” é pura poesia e o gancho funcional, que atinge em cheio quem assiste, tal e qual fresca brisa primaveril na primeira idade é a hora, finalmente, em que os dois se encontram. O abraço que eles dão um no outro, (lembra daquele abraço?) e por aí, finalmente, toda a obra, inspirada em “Il Mare”, da coreana Yeo Ji-na, nada mais é que um tratado poético explicitando passo a passo que um homem e uma mulher necessitam de muito pouco, quase nada mesmo, além do profundo sentimento, na maioria das vezes mal interpretado, mas capaz de mover céus e terras.

 

Quando Sandra Bullock e Keanu Reeves se abraçam, no final do filme, o expectador rumina e suspira: valeu cada centavo.

 

Sandra vive em 2006 e Keanu em 2004 e eles se comunicam através de uma caixa (mágica) de correio. Mas eles não colocam uma conchinha dentro da caixa. Eles colocam cartas. Assim, a coisa acontece antes no plano mental - eles escrevem um para o outro e nessa escrita, através dessa escrita chegam na intersecção de si mesmos – aqui também podendo ser interpretada como identificação.

 

Bullock, perfeita e linda, Keanu o de sempre para os fãs, e este filme pode decerto fazer às vezes do I-Ching projetado, tantas são as brincadeiras nesse sentido, pessoas dizem que “O Poderoso Chefão” é o I-Ching moderno – “se você viajar a passeio, deixe a arma e leve uma camisa limpa”, outras dizem o mesmo do “M.I.B”: “o pensamento humano é considerado uma doença em certas galáxias”, enfim, cada seção cultural possui o I-Ching que merece e diante destas libertinagens ideológicas “A Casa...” dá seus pulos.

 

Sandra, médica em Chicago, tem uma amiga que aconselha: digo isso para todo jovem médico que aqui chega – quando puder, vá para bem longe, para um lugar onde você se sinta bem. No inglês a idéia modula: go to a place to feel like yourself. Não se trata apenas de se sentir bem, mas de sentir-se você mesmo(a). Quantos lugares assim propiciam essa sensação?

 

Partindo desse conselho, Sandra desloca-se para a casa do lago, cuja explicação do roteiro vagueia quanto ao fato dela ter morado lá, pois tudo nessa obra é um vir a ser e um poderia, com o impedimento da defasagem de tempo entre os personagens, o fascínio que essa defasagem possa causar e como eles tentam ultrapassar esse curioso obstáculo.

 

A direção do argentino Alejandro Agresti, nada mais que pura sopa no mel num carrossel desses, se alicerça no cuidado fotográfico, na feliz marcação da passagem das estações do ano e usa os degraus do non sense e da explicação rarefeita para se comunicar com o espectador na própria linha sensitiva dos versos bem elaborados pelos gênios da palavra rimada.

 

Sandra desfruta de uma companhia, a mesma de Keanu, uma cadela magra de olhos tristes nas palavras da médica, a cadela chama-se Jack e seu papel, pela lente dos mundos encantados, pode ser encarado como o de um elfo ou entidade com livre passe pelas dimensões, imbuída do propósito de transmitir boas vibrações e propiciar a união dos que se amam à distância. Pela lente do RPG (o jogo), essa cadela seria um NPC (non player caracter), algo que figura no tabuleiro da vida sem maiores influências no destino alheio.

 

O jogo começa na primeira carta que ela manda para o novo inquilino da casa do lago, advertindo-o sobre pegadas na entrada. Que pegadas? – indaga-se Keanu e logo aparece Jack, entrando na casa. Era uma carta datada de 2006. Keanu estava em 2004. Consta um remetente na carta, endereço tal, em Chicago. Ele checa o endereço – ali será construído um condomínio com prazo de conclusão dentro de um ano e meio ou mais.

 

Na tabuada mística de Alejandro esses detalhes contam parco fator, o que vigora é a comunicação entre eles, o sentir aí inserido e as voltas que a vida dá na vida de ambos.

 

Metáforas dentro de metáforas, Sandra lê “Persuasão” de Jane Austen, um livro que versa sobre a espera, Christopher Plummer, o arquiteto pai do arquiteto Reeves, salienta o caráter de sua profissão ao exprimir que “uma estrutura perfeita, com o dever de resistir ao tempo, nunca ignora o ambiente. Um bom arquiteto, se quiser marcar presença, deve consultar a natureza”. Ele projetou a casa do lago, feita para não se relacionar com o mundo que a cerca, exceto através do material que a compõe: vidro. Outra metáfora: observo, mas não interajo. A própria Sandra confessará tal conteúdo comportamental com outros vocábulos, para a melhor amiga.

 

E o positivo do cinema flui em “The Lake...” com uma trilha de primeira e com o seguinte resumo da ópera - explorado por tudo quanto é novelista, dos caros aos baratos, no correr da história – duas pessoas não podem ficar juntas pela existência de impedimentos imperiosos.

 

No filme, é uma questão de tempo cronológico com uma lógica particular ilógica – mas quem se importa com isso quando sonhar é preciso? A autora inventou um quesito suave, perto de outros. No “Suave é a noite” de Fitzgerald, o que impedia aquele amor era a doença. De tudo os novelistas recriaram – guerras, situações financeiras e políticas, problemas com credos e raças, um zilhão de armadilhas já aconteceram e acontecem, com força suficiente para separar, pelo menos por um período de tempo, a união de um casal.

 

O argumento deste filme inventou um tempo próprio como obstáculo e também a possibilidade deles se comunicarem. Isso em cinema equivale a dupla sopa no duplo mel. Alejandro Agresti tratou essas delicadezas e devaneios com competência de se tirar o chapéu.

 

Keanu propõe para ela um passeio – ele desenha num mapa os seus locais preferidos na cidade, acrescentando que num dia de sol sente vontade de abraçar cada tijolo dos prédios antigos e que aquela casa ali é considerada a avó das casas da cidade. Sandra faz o passeio e o roteiro utiliza uma pichação de muro para incrementar a comunicação do casal. Dentro dessa lógica Keanu pichou muro, plantou árvore e escondeu um livro debaixo do assoalho, que na hora certa ela iria encontrar.

 

De forma gradual a trama permite uns resvalos. Dado momento ela exclama: Jura?! Você me viu mesmo?

 

Ele responde: sim, você tem olhos gentis, desarmados.

 

Cinema pode dizer muito, até mesmo com palavras.

 

 

 

 

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 12/05/2011
Reeditado em 06/11/2021
Código do texto: T2965801
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