“Crash – No Limite” (Crash)

“Crash – No Limite” (Crash)

 

 

 

Sabe como funciona um dos mais simples indicadores do avanço e ou ampliação da consciência perante releituras? Digamos de livros e filmes? Quando você não exclama: oh, puxa, estou assistindo (ou lendo) esse troço de novo, que chatice. Na verdade, a exclamação vem ao contrário: hummm, que interessante, não havia olhado por esse lado.

 

Por um lado, “Crash” é um gigantesco “Brasil Urgente” (onde o Datena pode ser você), só que vestido e representado pelos irmãos de Los Angeles, em Los Angeles.

 

Paul Haggis escreve, produz e dirige essa trama confeccionada em 2004, com estréia no Festival de Cinema de Toronto no mesmo ano para, alguns meses depois, ser lançada para o globo e consequentemente ao íntimo incômodo da banca de jurados da Academia, que em 2006 decretou: Melhor Filme.

 

Cabe ao espectador decidir quantos pregos vai colocar na cruz de cada um dos participantes do enredo, que tem a fina urdidura de levar o mesmo espectador a querer retirá-los, à medida que a história avança.

 

Matt Dillon deverá ser cravejado num primeiro momento, e mesmo o fato dele ter um pai doente não vai amenizar seu carma, mas no ponto xis do roteiro ele arriscará a própria vida para salvar outra.

 

Como – literalmente – o samba de uma nota só, a nota que governa toda a história é a da intolerância quase que absoluta motivada sempre – e sem dó – pela neura racial.

 

Bobby Moresco (co-roteiro) fornece o seguinte depoimento: “resolvemos de cara que iríamos falar de racismo, porém evitando lidar com isso de modo direto. Tentamos ser politicamente corretos e percebemos que nesse caminho não se conseguia o menor efeito dramático. Foi quando passamos a lidar com o tema de forma direta. Sabíamos que era feio, mas real, verdadeiro, e com serventia ao propósito da narrativa. Assim, não permitimos que a feiúra da história nos afetasse”.

 

Haggis escolheu a dedo cada representante que representa no elenco. A nota dos afro-americanos da década contribui com o quilate de sua grandeza - Terrence Howard e Don Cheadle, para começo de conversa.

 

Aos 57 minutos de filme o policial Matt Dillon diz para o seu parceiro o que pode ser considerado o jargão mor para qualquer habitante do planeta em início de existência:

 

- Você pensa que sabe quem você é? Espere alguns anos, você ainda não faz idéia...

 

“Crash” transborda tonalidades em 5 línguas – inglês, mandarim, espanhol, persa, coreano. As tonalidades estão há léguas da suavidade, mas são profícuas, residem em toda parte e se em 2004 o estopim estava centrado na raça, hoje nem isso.

 

A dupla menor de afro americanos, os ladrões A e B – eles não tem nome no filme, atua como agente fertilizador da questão do racismo, a tal ponto que em dado instante a mesma se perde numa caricatura.

 

Seria pertinente se o cosmo humano pudesse mesmo vê-lo como num filme e passar a enxergá-lo - o racismo - como uma aberração.

 

Assim, a Los Angeles Urgente proposta por Haggis pensa, a Sandra Bullock de Haggis mostra, em duas falas, uma atriz muito maior que a namoradinha da América, a excelente plástica musical do craque Mark Ishan acentua todas as costuras e seus paradoxos, falsas aparências, ledos enganos, estúpidas boas intenções.

 

Michael Pena representa os hispânicos desvalidos de L.A., ele é um chaveiro e no mesmo dia, em duas situações diversas é chamado de gangster e trapaceiro. Quando ele chega em casa conta uma doce história para a filha de 5 anos e esse gesto de ternura poderá ser encarado como um daqueles monumentais momentos de estupidez, que poderia ter custado a vida da menina.

 

Vivemos espremidos, e num átimo de poesia, ainda por cima, podemos por tudo a perder. Essa é a canção de baixo, de “Crash”. Num mundo intolerante, belicoso, carente de dois dedos de afeto para descontrair, há que se medir cada palavra para não cair no próximo mata-burro.

 

O ataque ou a molestação sexual de Dillon sobre a esposa do bem sucedido Terrence Howard não configura o caráter da singularidade e do privativo. É o ataque do Estado, algo que impossibilita o revide e aí reside uma ressonância difícil de lidar. Ademais, Dillon sabia que não se tratava do carro suspeito, da parte dele foi uma sessão de descarrego, falando relativo português, e traduzindo: estou com ódio e tenho o poder de extravasá-lo.

 

O assalto ao casal Brendan&Bullock foi movido pela mesma essência, de onde se conclui que nada é exatamente fortuito no mundo cão. Há sempre um gatilho mesquinho selando destinos.

 

“Crash” foi e ainda pode ser considerado como o brado e o estandarte do Saco Cheio Geral, mas acima disso ele é o retrato sinuoso da energia condensada numa grande povoação. Somos cúmplices e reféns dessa toada, cada um de nós, antes de qualquer condição, é um mero receptáculo energético.

 

Na segunda metade a sofisticada arquitetura de Haggis transmuta o L.A. Urgente numa sinfonia. Todos aqueles personagens e acontecimentos, que desembocam em novos acontecimentos e entrelaçamentos, ganham uma aura de orquestra que no fundo lamenta e pede ao humano um pouco mais de humanidade.

 

Dedicado para Anita Addison (1952-2004), segundo o diretor uma grande amiga, (baita homenagem), "Crash" singra mares externos e internos, mostrando que quem não cuida do segundo vive num contínuo maremoto.

 

A cena em que Dillon salva sua vítima da noite anterior e a cena em que o parceiro de Dillon salva o marido dela no dia posterior, ambas equivalem a injeções cavalares de informações multidisciplinares, que devem ter soado no juízo do júri, e nesses trechos, um seguido do outro, o jurado deve ter pensado: uau, melhor filme!

 

 

 

 

 

 

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 23/05/2011
Reeditado em 24/11/2021
Código do texto: T2988761
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