“O Discurso do Rei” (The King's Speech)

“O Discurso do Rei” (The King's Speech)



Para fortuna da História Moderna o treinador de George VI desconhecia “Piscacadawadaquoddymoggin”, senão teria usado isso como mais um elemento para destravar a fala do então príncipe. O ecletismo da família real tinha lá suas limitações.

Geoffrey Rush interpreta Lionel Logue, o australiano que ajudou os entrincheirados a terem uma voz durante os anos terríveis da Segunda Guerra, porque quando o medo impera urge uma voz para servir de alento e guia na escuridão. Ambos, o personagem e o ator, são mais do que dignos desse documento que faturou o Oscar 2011. Se na ribalta o rei Colin Firth faturou o Melhor Ator, Lionel Logue fica com o prêmio máximo na Escola da Existência e Geoffrey Rush não deixou por menos ao interpretá-lo.

Em 1936 o então Príncipe Albert, Duque de York, começou a ter aulas de dicção na rua Halley, em Londres, com um homem que ostentava um pequenino anúncio na porta de sua casa: “Lionel Logue – problemas na fala”. O filme dirigido por Tom Hooper aborda essa fatia do tempo entre 1936 e 1939, no coração da Inglaterra.

O que pode haver de tão especial entre uma majestade aprendendo a falar com um ator de teatro fracassado? Ora pois, eis o cinema, essa espécie de milagre tecnológico que quando bem usado acrescenta as vidas daqueles que dele se servem.

Hooper dirigiu dramas da BBC em 2000 e em 2002 tocou a série “Prime Suspect”, que trazia Helen Mirren no papel principal. Sua primeira aventura no longa metragem se deu dois anos depois e com relação ao presente trabalho não há o que se acrescentar tendo o mesmo recebido as devidas honrarias nas principais premiações do globo.

“Uma vida move muitas outras vidas”, já disse um personagem de Frank Capra, talvez na mesma época em que George VI destravava a mandíbula. David Seidler, o roteirista, teve a vida tocada pelo verdadeiro George VI. David nasceu em Londres em 1937 e durante a Guerra ouvia entusiasmado os discursos do rei. Detalhe – ele também era gago. Depois das cambalhotas da vida, aos 40 anos de idade ele desembarca em Hollywood, contratado por Francis Ford Coppola para escrever “Tucker: The Man and His Dream”. Outro detalhe – há muito ele tinha em mente a idéia de escrever sobre a saga de Lionel&Bertie (apelido do rei), e como tudo na vida, foi uma questão de tempo.

O milagre do cinema, evidente, não está atrelado somente a tecnologia. Os que escrevem, os que estão de olho nos mínimos detalhes, mais aquele que grita: ação, ou, corta, devem contribuir para que a mágica esteja completa. Dá o que pensar, pois basta aplicar a mesma fórmula noutros esforços conjuntos.

Somente para os que nasceram e ainda vivem numa aldeia zen, com golfinhos pulando na lagoa e harpas sonorizando o poente lidam sem stress com os primeiros 20 minutos de “O Discurso...”, com Colin Firth gaguejando para mulher e filhas, entre outras. Parece um papel ingrato e como tudo na vida, surge a indagação – onde esse caminho vai dar? Então aparece Lionel.

Talvez o maior mérito de toda essa realização seja o resgate desse encontro, bem como seus frutos e entreveros.

Lionel era um oásis de conceitos e inovações, digamos, no campo da fonaudiologia e Bertie teria carregado um fardo maior do que o necessário, com médicos mandando-o colocar bolinhas de gude na boca, não fosse essa primeira consulta. Sem duvida o australiano estava adiante de seu tempo e sua falta de diploma e doutorado consistem em mais uma das inúmeras revelações de que o que se deve aprender “in vivo”, não se aprende “in vitro”.

Em dado momento o espectador se pergunta pelo que deram o Oscar a Colin Firth – pela sua gagueira impecável ou pelos seus acessos de raiva, dignos de uma alteza incapaz de separar sua importância da verdadeira importância. Talvez por ambos.

Além de equipamentos e técnicas inovadoras, Lionel sabia por intuição dedutiva que aquele problema não era apenas mecânico. O ator em busca de sustento, logo após a Primeira Guerra, fora solicitado para cuidar dos jovens ex-combatentes que chegavam em frangalhos, sem conseguir exprimir sequer uma vogal. Disseram que ele levava jeito para a coisa.

Guy Pearce faz David, Príncipe de Gales, aquele que abandonou o trono pela plebéia Wallis Simpson, que na ótica deste roteiro deixa de ser aquela cândida secretária que roubou um coração monárquico para plasmar algo bem diverso e nada cândido.

Por fim, entre nomes e nomes, além de locações e ambientações à altura dos louros conquistados, Helena Bonham Carter faz a Duquesa de York e é impressionante como ela representa Sua Alteza – tanto no formalismo como na pseudo intimidade, abatendo assim eventuais mistérios sobre a postura de um monarca ante a criatura comum.

Na história geral da humanidade, bem como na história de cada indivíduo, sempre há a necessidade de se efetuar uma revisão sobre o passado a fim de analisar erros e acertos.

“O Discurso...”, face ao todo presente, é um dado valioso de revisão. Ele trata de um momento em que um louco de corrente vociferava para multidões, incitando-as às piores ações. Foi necessário que alguém segurasse um estandarte dizendo com todas as letras que a força não era solução. Esse alguém era um rei gago auxiliado por um ex-ator fracassado. Uma dupla de vencedores.


 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 20/07/2011
Reeditado em 27/09/2021
Código do texto: T3106879
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