“Quase Deuses” (Something The Lord Made)

“Quase Deuses” (Something The Lord Made)




Não adianta, colega, se você por ventura desenhou, esculpiu, escreveu, tocou, inventou, salvou, sancionou, idealizou, projetou, etc. algo ou alguma coisa de valor para a humanidade e espera receber um tapinha nas costas pelo feito, então danou-se, que nem a sua vizinha dona Lurdinha, nem o açougueiro, nem o Carlão que comercializa relógios quebrados na esquina ou a dona Inês que vende jogo do bicho debaixo do viaduto, nenhum deles em tempo algum irá agradecê-lo. Faz parte do show da espécie. Em filmes americanos passados o reconhecimento acontecia, talvez seja só em filmes, o que não deixa de ser uma inspiração, embora na história real mostrada nesse filme, nadica de nada, e os roteiristas fizeram questão de enfatizar, porque de qualquer forma foi assim que aconteceu.

Alan Rickman e Mos Def protagonizam. Vale acrescentar que o primeiro é um ator de primeira linha, no fim dos 80 ele fez um papel imperdível num filme alemão, boa chance de nos lembrar que talento e ganha pão nem sempre andam juntos, Rickman e grande elenco acertaram a sorte grande com “Harry Potter” e talvez sua imagem tenha ficado desgastada, mas saiba, em “Quase...” ele personifica com suprema exatidão Alfred Blalock, primeiro médico a realizar uma cirurgia cardíaca.

Mos Def reserva muito mais sofisticação do que se aventa, ele fez aquele “garoto” pedido pelos homens em “16 Quadras”, aqui ele é o outro lado da moeda, o parceiro do Dr. Blalock, e seu nome de batismo é Vivien Thomas.

Joseph Sargent dirige esta produção para a TV que faturou 3 Emmy em 2004, uma direção sem erros já é um grande acerto sendo, porém, o maior deles, a história em si. Nada vem de graça nesse nosso mundão e o mais interessante não reside apenas na ocorrência das coisas, mas como elas acontecem.

A rapaziada dos títulos, que jamais perde a chance de estragar um acontecimento, usou todo seu talento para apostar no conceito retrô de que o médico é um quase Deus, ao invés de simplesmente traduzir para Uma Coisa Feita Por Deus, que não só está contextualizada no roteiro como pretende exprimir a essência desse protagonista vivido por Mos Def – o doutor sem diploma Vivien Thomas.

Nashville, 1930.

Dr. Blalock pesquisa em cachorros o “choque traumático”, milhares de pessoas morriam disso todos os anos e a medicina desconhecia o caminho para salvar essas vidas. Exemplo pertinente a época: a queda de um garoto de 14 anos que subiu numa árvore para resgatar o gato da casa pode causar o “choque traumático” – a pressão despenca e os sinais vitais praticamente inexistem. O que não dizer de ocorrências mais graves. Em 1930 o laboratório do Dr. Blalock precisava de um faxineiro. Eis o momento que surge seu aliado de vida inteira.

Negro, deficiente pecuniário, jovem e com nome de mulher, quando Vivien Thomas passou pela porta e empunhou balde e esfregão, sua vida, a vida de seu empregador, vidas futuras e conceitos antigos iriam sofrer a transformação necessária para evoluir, através de um humilde servidor dotado de um dom além da imaginação.

No caso do “choque traumático” a cartilha mandava contrair os vasos, Dr. Blalock pensava ao contrário, as discussões com seu assistente eram a pedra de toque do progresso e numa hora dessas, na opinião do médico, o corpo precisa de sangue.

Baltimore, 1943.

A inovação do Dr. Blalock ajudou milhares de combatentes nos hospitais de campanha durante a Segunda Guerra e ele se torna o novo presidente do departamento de cirurgia do hospital Johns Hopkins. Nessa etapa do grande cronômetro Blalock e Vivien estão juntos há 13 anos.

Vivien tinha diploma de carpinteiro e desde criança sempre quis sem médico. A Crise de 1929 levou suas economias, então destinadas a universidade. Em Baltimore ele serve mesas e faz consertos no prédio para complementar a renda e está presente na primeira discussão a respeito de um impensável desafio. Mary Stuart Masterson faz a Dra. Helen Taussig e expõe a Blalock seu problema – malformações coronárias congênitas, conhecida no meio dos discípulos de Hipócrates como Síndrome do Bebê Azul - crianças com corações bons que sufocam devido a um estreitamento da artéria principal para o pulmão. Taxa de mortalidade – 100%.

“Nolitangere” – não toquem, eis o que se dizia em 1943 - o coração não pode ser operado. A equação é do tamanho de um bonde e Vivien fez um desenho na lousa sobre seu entendimento de como a artéria deveria ser deslocada.

Na véspera da operação o padre diz a Blalock o quanto ele é arrogante por tentar uma cirurgia dessas, Blalock retruca que é necessário ser arrogante para bancar tal empreita, entram em cena rapidamente os conceitos de Criador e criatura, desígnios, vontade divina versus resignação humana.
Hoje, apenas na América, 1.750.000 pessoas sofrem cirurgias cardíacas por ano. A primeira delas teve de acontecer num bebê sentenciado a morte. Blalock não segurou o bisturi até que seu parceiro estivesse na sala, ao seu lado.

Apesar de quase 30 anos relegado ao segundo plano e vendo o médico omitindo propositalmente o principal crédito e levar todas as honras, homenagens, fotos e primeiras páginas, e, em virtude disso, ter largado tudo e tornado-se por curto período vendedor de produtos farmacêuticos, Vivien voltou atrás para exercer sua vocação, mesmo que o preço fosse permanecer no ostracismo. Bem, até os heróis necessitam de um parabéns. Antes que o cinema lançasse luz sobre a sua saga, o hospital Johns Hopkins concedeu-lhe Doutorado Honorário e pronunciou-se da seguinte maneira:

“Hoje vamos agraciar alguém que não fez faculdade de medicina, mas se tornou um dos nossos maiores professores. Ele ajudou a mudar o nosso entendimento, para sempre, de como funciona o coração. Cientista inovador, professor extraordinário, e técnico laboratorial inigualável – Dr. Vivien Thomas”.

A justiça foi feita.

Alfred Blalock desencarnou em 1964 e o
Dr. Vivien Thomas em 1985. Cada qual segurou sua cruz como podia, se a criança tivesse morrido o primeiro estaria engraxando sapatos, na melhor das hipóteses. Vivien passou quase 20 anos tendo de entrar pela porta dos fundos e bater ponto como faxineiro, graças a essa anomalia chamada racismo. E depois de bater o ponto, quando ele vestia o jaleco branco seus pares o olhavam movidos por outra anomalia, a inveja.

Além de uma boa aula de história “Quase Deuses” traz baldes de reflexões sobre os papéis Criador&criatura e em que momento deve-se ou avançar ou recuar tendo sempre em mente que a última palavra vem do alto. Encerramos com um trecho de “Lawrence da Arábia”.

Lawrence integrava uma caravana de camelos que atravessava o Saara quando, dado momento, ele realiza que um de seus companheiros havia desaparecido. Os outros lhe disseram – fulano dormiu e caiu do camelo, isso deve ter acontecido há horas, vamos prosseguir. Lawrence argumenta que fulano vai morrer se ninguém fizer nada. Os outros lhe avisam que esta é a vontade de Alá. O herói refuta essa hipótese e parte em resgate, retornando ao entardecer com o companheiro são e salvo. E ele se gaba do feito. De noite há uma festa, e aquele que fora resgatado se envolve numa confusão, toma uma facada e morre. Os outros dizem para Lawrence – então, foi feita a vontade de Alá.






 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 04/10/2011
Reeditado em 14/09/2021
Código do texto: T3256829
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