“A Insustentável Leveza do Ser” (The Unbearable Lightness of Being)

“A Insustentável Leveza do Ser” (The Unbearable Lightness of Being)


“Vocês não acham estranho vivermos numa sociedade que desvaloriza as funções mais importantes? Não nos importamos de dar 5 milhões para um jogador ou 10 milhões para um ator. Imaginem um mundo onde o dinheiro fosse dado para os que mais nos beneficiam. Professores, artistas, enfermeiras, bombeiros, mães, escritores... Pessoas que nos conectam, e não que nos desconectam”. Palavras de Donald Walsch durante palestra realizada na terra dele, USA, quase uma década atrás, sobre assuntos alheios ao cinema.

Philip Kaufman, um diretor que dispensa apresentações e trabalha através de um afinado senso de composição, elaborou para os padrões de 1988 um filme mediano que hoje, revisto, merece ao menos figurar no panteão das obras que nos conectam.

Daniel Day-Lewis, Juliette Binoche e Lena Olin encarnam as palavras do autor laureado - por mais de uma indicação ao Nobel - Milan Kundera.

Como 2 e 2 são 5 no verdadeiro pavimento artístico e o tempo em relação a arte é uma canoa que navega rumo a um norte muito particular, o erotismo proposto pelo filme soçobra em 2011 ao passo que a intenção maior do autor continua a florescer e acrescentar.

Daniel Day-Lewis faz o jovem cirurgião que transita entre Praga e arredores, a jornada para ele é um jardim de lençóis com moças frescas feito ostras de Cananéia e a direção de Kaufman mostra esta primeira fração com a delicadeza da atmosfera experimentada pelo protagonista. Ou, se preferir, leveza.

“A vida é tão leve...” ponderou Kundera, "(...) que chega a ser insuportável” (unbearable), do título original.

Eis a nossa missão na terrinha, seja ela Praga, Calcutá ou São João da Panelinha. Cada um que faça a sua tradução do que viu e sentiu.

Day-Lewis e Lena Olin, por assim dizer, já se beliscavam aqui e ali, quando surge para o cirurgião sua cara metade, Juliette Binoche. Lena, artista plástica, cosmopolita, ciente da sua dignidade pessoal tanto quanto das suas fraquezas, Juliette, interiorana, garçonete, também tem a arte dentro si – a fotografia, e suspira por um grande amor. No tempo da narrativa, Daniel e Juliette vão se casar e Praga ainda acreditava que teria uma primavera.

Philip Kaufman constrói com eficácia a invasão dos tanques russos em 1968, fazendo bom uso de imagens iconográficas mescladas a adaptação das lentes Panavision de 88 para 68 e assim simulando os protagonistas no evento. Há um detalhe nas iconografias – as feições dos soldados russos, uma gente recrutada pelos correligionários de Stalin nos confins da Eurásia, o que se lê em seus rostos não passa de afeição a tudo que seja rude e avesso a vida. Para um facínora, o exército dos sonhos.

O médico criado por Kundera tece ponderações vez ou outra capazes de transcender o tempo-espaço. Dado momento, pouco antes da invasão, ele pensa em voz alta: “Édipo matou o próprio pai, sem saber que se tratava de seu pai, e dormiu com sua mãe, igualmente desconhecendo esse fato. Quando tomou ciência ficou tão horrorizado que arrancou os próprios olhos. Ora, nossos governantes alegam que não sabiam de nada sobre a matança de milhares de inocentes, mas quando ficaram sabendo não se sentiram culpados e, pior, ainda estão no poder”.

Kaufman se celebrizou com o drama épico “Os Eleitos”, aqui ele fez um trabalho correto e complementou o segundo sonho de todo autor (o primeiro é o Nobel).

Rotular “A Insustentável...” como mero triângulo amoroso entre Daniel, Juliette e Lena equivale dizer que futebol e tênis são iguais, a única mudança está no tamanho da bola. Kundera formulou propostas e raciocínios que vão muito além de cama&mesa&banho, através da mais eficiente forma de colocar em palavras nosso humano perfil – o romance.

Entre outras, forneceu para a posteridade uma intrigante ótica: “a vida é tão leve, é como um contorno que nunca podemos preencher ou corrigir, para melhorá-la”.
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 15/10/2011
Reeditado em 11/09/2021
Código do texto: T3278444
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