A fresta por onde entra o sol

Difícil imaginar o mundo daqui a 50 ou 100 anos, mas se o futuro for um tempo melhor de se viver, certamente os historiadores registrarão o início deste milênio como uma época de pessimismo e desesperança. Para nós, protagonistas do presente, o otimismo tem chegado apenas em forma de pílulas de entusiasmo.

Lembrando do curioso título do livro do filósofo canadense Lou Marinoff (“Mais Platão, Menos Prozac”) e me baseando numa receita filosófica bem antiga, arrisco-me a levantar a hipótese de que é possível rir mesmo depois de constatar a feiúra do mundo ao redor. Conta-se que, diante da miséria humana, dois grandes filósofos da antiguidade – Heráclito (540/470 a.C.) e Demócrito (460/370 a.C.) – agiam de maneiras diametralmente opostas: enquanto o primeiro chorava, o segundo ria.

Sou tentado a pensar e a agir como Demócrito, mesmo sabendo que Heráclito facilmente comprovaria a sua tese em nosso tempo. Não será essa uma forma otimista de ver o mundo? Com certeza é para o diretor de cinema alemão Percy Adlon. Pelo menos foi o que ele externou no maravilhoso Bagdad Café, filme de 1987.

Perdi a conta de quantas vezes o assisti só para entender a composição da personalidade de Jasmin –interpretada por Marianne Sägebrecht. Ela é uma turista alemã que, depois de discutir com o marido, é deixada no meio “do nada”, numa rodovia localizada em pleno deserto de Mojave, nos Estados Unidos.

A cena surreal daquela mulher arrastando uma mala pela estrada, debaixo de um sol escaldante, é a própria imagem do desalento, da total falta de perspectivas. Aí começa a saga de uma pessoa com muitos motivos para se desesperar, para ser pessimista. Afinal, o único lugar que lhe restou foi um misto de lanchonete e hospedaria em decadência, chamado Bagdad Café.

Jasmin se instala naquele lugar sob a desconfiança de sua dona, a amarga e mal humorada Brenda (uma interpretação magistral da atriz CCH Pounder). Aos poucos, aquela alemã de corpo avantajado e roupas exóticas consegue imprimir a sua luz interior numa realidade cinza e bolorenta. Mais até, ela chega a contagiar Brenda, dissolvendo aos poucos o seu amargor pessimista.

Vale destacar que essa aura mágica de Jasmin atinge em cheio a todos os hóspedes, em especial Rudy Cox, um ex-ator de Hollywood e pintor em crise, vivido pelo veterano Jack Palance. O incrível das transformações que vão acontecendo naquele lugar abandonado é que elas não se dão de fora para dentro, mas no caminho inverso. Exatamente aí residem as reais possibilidades do otimismo.

Uma das frases mais famosas de Demócrito é “ocupe‐se de pouco para ser feliz”. Será esse o segredo do seu otimismo, que prega o riso mesmo diante dos infortúnios? Em Bagdad Café é essa a receita da felicidade de Jasmin. É como se ela descobrisse num quarto completamente escuro a fresta por onde entra o sol.