NÓS QUE AQUI ESTAMOS POR VÓS ESPERAMOS - MARCELO MASAGÃO

MASAGÃO, Marcelo. Nós que aqui estamos por vós esperamos.

O documentário “Nós que aqui estamos por vós esperamos”, de 1999, do cineasta Marcelo Masagão, foi premiado no Festival de Gramado em 2000 por sua montagem e no Festival de Recife em 1999 como melhor filme, melhor roteiro e melhor montagem. O filme apresenta a História do século XX através de memórias de pequenas histórias de grandes personagens e de grandes histórias de pequenos personagens, dando, assim, maior destaque aos personagens ditos “anônimos” das sociedades. Com esta visão, o documentário desmistifica a ideia de que a História é construída apenas por grandes personalidades, trazendo esta construção para mais próximo do povo que a integra e que realmente constrói as sociedades através das suas ações. Cabe ressaltar que as histórias contadas no decorrer do filme são fictícias, como é dito nos créditos do filme, mas nem por isso deixam de ser verossímeis e pertinentes para o entendimento da construção do século passado e do seu legado para este novo século.

O filme não possui falas e é construído por recortes de imagens, vídeos e textos, além de ter uma trilha sonora bastante importante composta por Wim Mertens que está em grande harmonia com o filme. O documentário começa apresentando Nijinski, bailarino e coréografo russo do início do século XX, em que geralmente é atribuído a ele o início da dança moderna por suas coreografias revolucionárias. Após, com imagens “virando de cabeça para baixo”, a obra vai mostrando as transformações sociais e culturais que propiciaram a conjuntura deste século como a industrialização, a descoberta de novas tecnologias (como o telefone), a maior inserção da mulher no mercado de trabalho, a mudança das concepções artísticas a exemplo de Pablo Picasso, a psicanálise com Sigmund Freud e a Revolução Russa que trouxe à prática um novo modelo de modo de produção social.

A partir disso, o filme constrói a identidade do século XX através de histórias de vários anônimos: o operário da indústria de automóveis que nunca conseguiu comprar um carro, demonstrando também a exploração existente nessa relação de trabalho em que não somente o produto está alheio a quem o produz, como também a totalidade da sua produção, como é exemplificado no outro operário que somente aperta parafusos. Esta imagem mostra a consolidação da nova relação de produção do sistema capitalista, em que o trabalhador apenas vende a sua força de trabalho em troca de um salário e desconhece toda a produção com a divisão do trabalho, realizando muitas vezes trabalhos monótonos e repetitivos.

A guerra tem um espaço importante no filme, desde a apresentação de quatro gerações de uma mesma família mortas em guerras distintas, ao choque de guerra, consequência do grande trauma sofrido por muitos soldados que sobrevivem às guerras. O documentário demonstra, através de imagens e textos de soldados, que todo o sacrifício das guerras torna-se vão, no momento em que as guerras não surgem em prol dos interesses dos soldados, mas são frutos de relações de poder muitas vezes indiferentes àqueles que realmente participam da guerra, como está nas entrelinhas do trecho do documentário, escrito pelo soldado Heinrich Straken (1919-1942): “Tornamo-nos uma máquina de esperar. No momento esperamos a comida, depois será a correspondência e a qualquer momento uma bomba inimiga que poderia acabar com a nossa ansiosa e tediosa espera”.

Uma outra parte do documentário apresenta fotos de ditadores do século XX, como Hitler, Mussolini, Stalin etc. apresentando a palavra paranoia para designá-los. São exibidas as personalidades das figuras históricas com um tom psicanalítico, sugerindo influência das suas personalidades nas suas ações. Aliás, a Psicanálise sempre está presente no decorrer do filme, estando em relação íntima com a História: em seu início, o historiador é chamado de Rei e Freud de Rainha, demonstrando que as sociedades são construídas através dos seus imaginários, que por sua vez são construídos, no âmbito social, pelas contradições sociais da História e, no âmbito individual, pelos conflitos psicológicos de cada indivíduo. A importância da História e da Psicanálise são confirmadas nos créditos do filme, em que são exibidos como “Consultoria espiritual” o Sigmund Freud, criador da Psicanálise, e o Eric Hobsbawm, historiador marxista.

As lutas das mulheres por ascensão social no século XX também têm um grande destaque no documentário. Ao mesmo tempo em que são mostradas as mulheres como marionetes, movimentando-se de forma padronizada, imagens e textos contestatórios de mulheres contrapõem esta visão, ilustrando as lutas das mulheres: a conquista do direito ao voto, comportamentos independentes, o uso da minissaia e a “queima de sutiãs” de 1968 são fatos ou ações que trouxeram maior espaço social para o gênero feminino. No entanto, ao exibir que mulheres que trabalharam na indústria bélica durante a guerra, após o seu término, voltaram para apenas cuidar dos lares, evidencia que a luta das mulheres não tinha terminado e que, apesar dos avanços, a sociedade ocidental ainda conserva o patriarcalismo.

O filme também apresenta a diversidade religiosa e a importância da religiosidade na sociedade como construção identitária. Contudo, é demonstrado como as religiões participam das relações sociais de poder através da construção de ideologias. A religião na guerra para abençoar os soldados que lutam por interesses alheios (“Deus perto do inferno; em algum campo de batalha”), o auxílio de Deus dito por muitas religiões a situações não tão emergenciais (“Deus perto de pequenos problemas humanos”) e o descaso social em relação a situações emergentes como a fome ou o abandono infantil (“À espera de Deus”).

O título “Nós que aqui estamos por vós esperamos” vem do letreiro exposto em um cemitério localizado na cidade de Paraibuna, no interior do Estado de São Paulo, onde se lê a mesma frase. Durante todo o filme, sempre são mostradas imagens de um cemitério, ou seja, todos aqueles que contribuíram para a construção do século XX provavelmente já estão mortos, mas possuem importância para o legado do século XXI, e “esperam” por todos nós. Em seu final, o documentário, que foi exibido todo o tempo em preto e branco, surge com a imagem do cemitério tornando-se aos poucos colorida e terminando com a imagem do letreiro do cemitério que intitula o filme, o que parece sugerir que, com as memórias do século XX, os novos atores sociais construirão o século XXI de forma inovada. Lembrando que, para o documentário, os principais atores sociais são os “anônimos”, os quais não são tratados como números ou estatísticas, mas, sim, de forma individual e trazendo para a sociedade a importância das histórias das suas vidas.

DAVID ALVES GOMES
Enviado por DAVID ALVES GOMES em 13/10/2012
Reeditado em 13/10/2012
Código do texto: T3930514
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