“Fé demais não cheira bem” (Leap of Faith)

“Fé demais não cheira bem” (Leap of Faith)






Fala sério, num momento – o presente – em que fervilham shows de talentos vocais com audiência nacional e programas de TV voltados à pregação, Leap... não conseguiria ser mais atual nem se quisesse. E há um detalhe: a tchurminha em torno da minha idade, com margem de erro para cima ou para baixo, se lembra da existência desse trabalho e ainda se dá ao luxo de dizer: é com o Steve Martin, certo?

A igreja do pastor Jonas Nightengale (Martin) é desmontável, trafega de uma localidade a outra dentro de caminhões daqueles pesos-pesados, quando armam a tenda vendem adesivos de pára choques, pandeiros, camisetas, bíblias...

Debra Winger é a parceira de Steve, o perfeito protótipo feminino da era “Friends”, jovem, inteligente, eficiente, descolada...
Algumas culturas pularam essa etapa em nome de uma sexualidade esdrúxula, ou caricaturesca, mas Debra está lá, com seu modo de falar e agir, subliminarmente avisando ao futuro: ops, devagar com o andor.

Liam Neeson faz o xerife que fica na cola de Steve jogando na cara dele que tudo aquilo não passa de um embuste. Isso porque ele desconhecia o senado tupiniquim...

Phillip Seymour Hoffman em início de carreira encena o gringo aéreo, meio hippie, integrante da gangue.

Lolita Davidovich, a garçonete com um drama familiar.

A tristeza do título em português não vale sequer meio comentário e a tradução seca do original seria Salto de Fé, mas, se você for pesquisar Leap of Faith vai se deparar com uma orquestra de coisas.

Steve no palco, na sua apresentação de estréia na pacata Rustwater, Kansas, encena uma falsa clarividência para o público presente. Tão logo as pessoas vão chegando já estão a postos olheiros treinados para recebê-los e ali prestam atenção a nomes e fragmentos de conversas que servem como substrato das doenças humanas: a tal menina apanha da mãe por estar grávida, fulano é alcoólatra, sicrana briga com o vizinho, toda essa informação se movimenta através de papeizinhos e pontos eletrônicos, tudo vai parar no colo de Debra, que está sentada numa cabine e tendo a sua frente vários monitores acompanha o desenrolar dos fatos e dali ela filtra o que interessa ao pastor.

A relação dela com Martin funda-se num vínculo que pode servir de norte para gerações sem fim. São parceiros comercias, sim, mas também cingidos por uma amizade que respeita, defende e liberta. Haverá um momento em que Martin será duramente atacado e ela não se aflige para desembainhar a espada. Afinal, amigos são para isso mesmo.

Na minha leiga opinião Richard Pearce é um diretor eficaz, nos 90 distinguiu-se com trabalhos muito acima da média, tais quais The Long Walk Home e A Family Thing (por hora estamos em greve com a tradução dos títulos...).

As cenas da lona sendo erguida, com ensaio do coral ao fundo, deslizam pelos sensores como água gelada no deserto, pode parecer batido, mas tudo é uma questão de ocasião, o chute de trivela no futebol e o “bend” do guitarrista de blues também o são, porém, dependendo do momento em que aparecem, levantam platéias.

Aliás, batido é o infeliz do Putin manobrando tropas. Eita imagem insuportável.

O primeiro show do pastor Martin ganha de 10x0 de todas as porcarias televisivas momentâneas e passadas de A à Z, visto serem porcarias e inexiste argumento contra isso. Utilizando as palavras chave que hoje habitam os lábios dos profissionais da fé – de pregadores a místicos e esotéricos, aos brados e numa espécie de dança ele avisa que o medo é pior do que a morte, que a propósito, nunca ninguém voltou para reclamar, mas o medo leva para a loucura da perda do que já se tem, ou de não se ter: amor, casa, mulher, emprego, filhos, e se por ventura o cidadão os tem, teme perdê-los, e Martin brada ainda mais, dizendo que uma arma não vai proteger seus filhos. O único que pode protegê-los atende pelas iniciais de J.C.

Nas falas gerais do roteiro, a cada 3 palavras, grosso modo, surge “Jesus”, às vezes há irreverência, mas não desrespeito. É um modo curioso de comunicar, revela uma saudável intimidade, retira-o dos confins da galáxia, onde os manipuladores pretendem que esteja, e coloca-o onde sempre esteve: ao nosso lado.

O que talvez tenha passado despercebido na época é que o pastor movimenta uma tremenda energia ali naquele palco, seus acompanhantes musicais são de primeiríssima categoria - tanto os instrumentistas quantos os vocais, aliás, uma penca deles. Outra coisa que deve ter escorregado para fora do sistema de percepção daqueles idos é que mesmo com o briefing oriundo do ponto eletrônico, a hora em que ele chama cada um dos escolhidos da platéia para curá-los a energia da cura já está circulando. Isso se chama “disposição”. E há um acompanhamento de palavras. Ele abraça a mãe que bate na filha e fala em perdão, diz ao que tem problemas com o vizinho que melhor seria fazer um frango frito para ele, etc., ora, o que está em jogo nessa encenação é que as pessoas saem do problema por instantes e se tornam parte do movimento. Talvez inadvertido, o que o roteiro professa (dizem que foi copiado do livro The Faith Healers de James Randi) é um desses sérios ensinamentos espirituais relegados ao segundo plano: aja com fé e a fé virá. Ou como o povo lá do norte do planeta costuma verbalizar: fake it, till you make it.

Finda a primeira noitada eles contam a féria: 4.000,00 US Dólar.

O xerife Liam Neeson aparece para ter um reservado com Martin. Diz que legalmente não pode fazer nada, mas que acha uma tremenda safadeza esse circo todo extorquindo as pessoas (elas doam espontaneamente), que levam uma vida dura, 27% estão desempregados, a lavoura vai ruir se não chover numa questão de horas, por aí a fora.

Martin retruca que um show como aquele em N.Y. custa 65 dólares por cabeça e que pelo menos todos saem de lá com esperança. Dependendo de como se olha pode-se dizer que o personagem marcou um ponto com a questão do show. O preço pode não parecer vultuoso, mas lembre-se que o filme foi rodado em 1992.

Em 1990 o diretor Richard Pearce teve a honra de dirigir duas grandes estrelas: Sissy Spacek e Whoopi Goldberg dividiram o palco numa ambientação dos 50 permeada pela problemática racial. Sissy era a patroa, Whoopi a serviçal e sua volta para casa, diariamente, um calvário. Lá chamou-se The Long Walk Home. Em 1996, escrito por Billy Bob Thornton, ele iria dirigir um filmão com Robert Duvall e James Earl Jones - A Family Thing, um trabalho marcante cujo molde parte dos produtores atuais (sim, o Oscar...) nem com bússola e GPS serão capazes de encontrar.

Leap of Faith não fica devendo um mísero tostão à modernidade (seja lá o que isso signifique, ou a menos que isso signifique um cachimbo de crack e um AR-15...), o pastor Steve e sua trupe vão passar alguns momentos na pequena localidade, o suficiente para que todos sofram mudanças em suas próprias perspectivas, especialmente no que tange à relação com o Altíssimo.

Especialmente o próprio Steve que, logo no início, faz um discurso numa lanchonete explicando que certas pessoas tem uma dependência maior de Deus.

A título de curiosidade, uma ala da Nova Ciência diz o mesmo dos dependentes químicos.

O personagem de Steve, um sujeito que não se abate com nada, que ficou 5 anos num orfanato esperando a mãe que nunca voltou, apesar de ser um bandoleiro do Evangelho, é também um polinizador. O que ele espalha não tem preço. No final do filme, uma noite de chuva, ele dirá para si mesmo aquilo que muitos de nós proferimos, com sorrisos ou lágrimas, chova ou faça sol.

Enquanto isso, antes de subir no palco, ele proclama para a gerente Debra, e ao fazê-lo, acabou resumindo tudo mais uma vez:

- Vamos dar a essas vidas vazias algum sentido.
 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 05/03/2014
Reeditado em 27/04/2021
Código do texto: T4715949
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.