Syriana, O Senhor das Armas e as Imagens Viciadas

O modelo de cinema, lapidado à exaustão pelos norte americanos, impõe um padrão implícito que, de tão comum, freqüentemente passa desapercebido. Nos últimos anos, com o estabelecimento das novas tecnologias, cada vez mais a indústria cinematográfica despeja itens e mais itens. A movimentação da indústria atordoa aqueles que amam o cinema, mas que se vêem arrastados pelos turbilhão de novos lançamentos constantes, sem tempo para envolvimento com personagem e filmes, sem tempo para assimilar mensagens. Essa cultura do fast food unida ao padrão imposto está nos fazendo perder muito, tanto com relação à experiências emocionais, quanto com relação à flexibilidade para reconhecer a importância da diversidade e da promoção da qualidade do diferente, sem que este perca suas propriedades individuais. Pensei nas implicabilidades de tudo isso no fim da projeção de Syriana, um filme que foge ao ritmo padrão e à forma padrão de contar uma história.

Em Syriana o protagonista não é o personagem de George Clooney e sim um deus onipresente. Trata-se do óleo negro que brota das entranhas da Terra e que se transformou na matriz energética do mundo capitalista: o petróleo. Por ele se mata, se rouba, se corrompe, se condena povos à condições de vida miseráveis, por intermédio dele se fica cego pela ganância e sede de poder. Mas Syriana não critica diretamente nada disso, apenas apresenta um mosaico de personagens, cada um com sua história pessoal que direta ou indiretamente, de alguma forma, sofre a influência da indústria do petróleo. Apenas... Na verdade o “apenas” está na medida certa para fazer pensar em como decisões isoladas provocam efeitos em cadeia, aos quais estão sujeitos desde o operário desempregado do Oriente Médio até o alto executivo chinês, personagens tão díspares, distantes e desconhecidos, mas ao mesmo tempo tão intimamente ligados aos destino da humanidade e de todo o planeta. Como diz o slogan do filme, “tudo está conectado”. A crítica acontece na mente do espectador, naturalmente, sem nenhuma indicação explícita.

A idéia é interessante e ousada: apresentar um painel do que acontece mundialmente envolvendo o controle do petróleo. Estão ali as referências às questões do Oriente Médio e à forma cínica como os poderosos ocidentais tratam os interesses daqueles povos, está ali a CIA envolvida com politicagens que na verdade servem somente aos interesses dos donos do capital, estão ali os empresários, analistas, operários da indústria, os militares. Mas, o espectador, viciado no padrão cinematográfico, fica esperando que as várias histórias presentes em Syriana se cruzem. A espera cansa, e o filme acaba se passando por confuso, chato, cansativo. Difícil prestar a devida atenção, difícil chegar ao final, quase impossível não sentir falta do ritmo hollywoodiano, dos clichês, dos romances açucarados, das imagens bonitinhas. Ousar, em tempos de visão viciada, pode ser um tiro no próprio pé, mas por isso mesmo um ato de coragem. E, talvez, por respeito a essa coragem, mais do que qualquer outro motivo, o filme tenha conseguido ser lembrado com indicação ao Oscar por melhor roteiro original e obter a vitória de Clooney como melhor ator coadjuvante. A indicação foi honrosa e a vitória mais ainda.

Honroso também vem sendo o posicionamento de várias personalidades do cinema mundial contra a influência de seus próprios governos. Os norte americanos, em especial, se sentem traídos por seus políticos, descontentes e surpreendentemente conscientes da situação nefasta que assola o mundo, com guerras e miséria a ofuscar o brilho das suas limusines e lhes dando motivos para se envergonharem. A crise do Oriente Médio e as reais motivações indisfarçáveis (controle do petróleo e fontes energéticas), as condições climáticas da Terra e o fato de serem alçados à condição de vilões históricos do mundo globalizado têm levado os norte americanos a olhar para o próprio quintal e perceber que mesmo aquilo que é diferente merece respeito. O cinema reflete essa situação ao possibilitar, cada vez mais, visões alternativas. É por este caminho que também parece seguir o filme estrelado por Nicolas Cage e Jared Leto, O Senhor das Armas (Lord of War), que conta a história de um traficante de armas.

Nascido na Ucrânia,Yuri Orlov (Nicolas Cage), muda-se para os EUA com os pais e irmão quando ainda criança. A dissolução da União Soviética faz a família procurar por melhores condições de vida em outro continente. Já adulto, desiludido e sem projetos de vida, Yuri se interessa pelo tráfico de armas e aos poucos torna-se um grande comerciante internacional. Frente aos perigos do comércio ilegal, atrai seu irmão (Vitaly, Jared Leto) para ser seu sócio e braço direito. Mas Vitaly torna-se um dependente de drogas e se afasta para enfrentar tratamento médico. O desenrolar da história mostra a alienação moral do protagonista que mesmo confrontado com os horrores da guerra civil, com a perda da família e do irmão de uma forma absurda e dolorosa não abre mão de continuar o tráfico de armas. Mais do que isso, Yuri se torna escravo da situação em que se enredou, ele tem um papel de projeção internacional a cumprir, passa a ser assediado por aqueles que realmente governam o mundo e dos quais não poderá mais escapar sem se perder. Ele segue adiante sem dramas de consciência, afinal: "Você sabe quem vai herdar a Terra? Vendedores de armas. Porque o resto está ocupado demais se matando. Este é o segredo para sobreviver, nunca ir para a guerra. Especialmente contra si mesmo". Resta saber que “Terra” eles herdarão, já que o planeta está a pedir trégua.

O Senhor das Armas, assim como Syriana, não é um filme fácil. Começa com uma narrativa que a certa altura se torna cansativa, pois não consegue prender o interesse e a mente tende à divagar. O drama dos personagens não se sobrepõe ao contexto e fica faltando algo que vincule essas duas camadas, formando uma unidade menos cansativa, o que também ocorre em Syriana, onde falta umas gotinhas de cola entre as várias histórias contadas. São filmes cujos temas talvez perdessem sua importância se tratados no formato padrão dos filmes comerciais, mas cujos resultados, no geral, não funcionam bem, provavelmente por erro de dosagem do emprego da sutileza durante o processo de edição. Mesmo assim, ambos são filmes que deixam uma certa sensação de fatalidade e melancolia. Neles se percebe a crise de valores que contamina todo o planeta como se fosse um vírus.

Syriana e o Senhor das Armas são a cara do mundo que está aí e que o cinema mostra para quem quiser ver. É verdade que, talvez, mostrando, de alguma forma, haja jeito de se encontrar uma vacina eficaz. Mas o cinema também pode ter muitas intenções e se você deseja manter sua liberdade de pensamento, desconfie, principalmente quanto tudo parece certinho!

O Senhor das Armas

> Site Oficial: http://www.lordofwarthemovie.com

Syriana

> Site Oficial: http://www.syrianamovie.warnerbros.com