A deturpação cinematográfica dos Evangelhos

A DETURPAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DOS EVANGELHOS
Miguel Carqueija

Resenha do filme “O Rei dos reis” (King of kings) (EUA, Metro Goldwyn Mayer, 1961). Produção: Samuel Bronston. Direção: Nicholas Ray. Roteiro: Philip Yordan, com base nos Evangelhos e nos escritos de Tácito (historiador romano). Música: Miklós Rósza.
Elenco:
Jeffrey Hunter...........................................Jesus Cristo
Siobhan McKenna.....................................Maria
Robert Ryan..............................................João Batista
Rip Torn....................................................Judas Iscariotes
Royal Dano...............................................Pedro
Viveca Lindfors.........................................Cláudia
Gérard Tichy.............................................José
Ron Randell..............................................Lucius
Hurd Hatfield............................................Pôncio Pilatos
Brigid Bazlen.............................................Salomé
Harry Guardino.........................................Barrabás
Frank Thring.............................................Herodes Antipas
Grégoire Aslan..........................................Herodes o Grande
Guy Rolfe.................................................Caifás
Carmen Sevilla.........................................Maria Madalena
Edric Connor............................................Baltazar
Rita Gam..................................................Herodias
Antonio Mayans.......................................João Evangelista

Esta fita goza de grande prestígio e até me espantam os elogios rasgados que encontrei na internet. Contudo é uma obra medíocre ainda que servida por grande pomposidade. Tem até trechos só de música sem imagem, a não ser as palavras “Overture” no início e “Entreact” no meio. E nem é tão boa assim a trilha musical.
Considerada uma produção norte-americana foi porém rodada por Samuel Bronston no estúdio espanhol que ele então mantinha e onde realizou suas superproduções que acabaram por levá-lo à falência. Ironicamente, o filme que faliu Bronston intitulava-se “A queda do Império Romano”. Posteriormente ele voltou a fazer cinema, em bases mais modestas.
Superproduções hollywoodianas e similares apresentam características bem específicas. Tendem a ser pomposas, grandiloquentes, apoiando-se em elencos milionários e cenários espetaculares, além de uma multidão de figurantes. Isso nos velhos tempos, em que tais superproduções eram geralmente épicas. Hoje em dia predominam os efeitos especiais da ficção científica e fantasia.
Não é de espantar que estúdios possam falir nessas aventuras, pois o orçamento é enome e o retorno em bilheteria pode decepcionar. Além disso a parte artística pode falhar, obscurecida pela obsessão do espetáculo.
“King of kings” nessa versão de 1961 (há uma bem melhor de 1927, dirigida e produzida por Cecil B. De Mille) tangencia a falta de respeito para com a religião e a Sagrada Escritura. Sem embargo dos elogios feitos ao ator Jeffrey Hunter, que interpreta o Cristo, e de quem se dizia ter olhos lindos — a mim a impressão na tela foi outra, ficou parecendo um Cristo com olhar de louco — o resultado geral é deplorável: má interpretação, cenas pessimamente dirigidas pelo Nicholas Ray, roteiro absurdo, deturpação quase completa dos acontecimentos descritos nos Evangelhos.
Para vocês terem uma idéia, arranjaram até um advogado para Jesus — verdadeiro delírio de roteiro. Judas Iscariotes trai Jesus não porque fosse um traidor, mas por achar que, ao ser preso, o Mestre liberaria os seus poderes e esmagaria os romanos. A idéia de um conchavo entre Judas e Barrabás até que poderia passar, mas colocar uma rebelião contra o domínio romano no próprio dia em que Jesus chega a Jerusalém, e dar a entender que os romanos é que se empenharam contra Ele, tido como sedicioso — é absurdo, uma invencionice que parece ter sido usada para afastar a responsabilidade da Sinagoga — Caifás pouco aparece. É fato que, ao longo da História, os judeus como povo foram injustiçados, acusados em peso de terem crucificado Jesus Cristo que afinal, enquanto homem, também era judeu. Afastar essa injustiça histórica porém não desobriga de culpa os judeus específicos — os fariseus da época, o Sinédrio — de, em nome do Judaísmo, prenderem e provocarem a morte de Cristo. O motivo era de fato religioso, mais que político — o conceito do esperado Messias achava-se desvirtuado e esperava-se um libertador político, que liderasse o povo hebreu para libertá-lo da dominação romana. Jesus foi considerado blasfemo por se dizer Filho de Deus, e só foi levado a Pilatos porque o Sinédrio não tinha autonomia para condenar à morte. E os Evangelhos deixam bem claro que Pôncio Pilatos, governador romano, não queria condenar Jesus, antes tentou salvá-lo, defendeu-o e só assinou a sentença de morte por pusilanimidade, até porque ameaçaram intrigá-lo com Roma. Ora bem, o filme apresenta um Pilatos totalmente ensandecido e predisposto contra Jesus, a ponto de querer que Ele “confesse” (sic) respnsabilidade em sedição.
Pilatos aliás — não sei se para superespor o ator Hurd Hatfield — aparece a toda hora no palácio de Herodes Antipas, e é notório que os dois não se davam bem, só passando a ser amigos depois que o governador, desejando livrar-se do busílis, envia Jesus a Herodes, que por sua vez devolve o acusado. Herodes de resto está ridículo. João Batista está ridículo, e sua provocação na porta do palácio de Herodes, resultou uma cena horrorosa e não condizente com o santo profeta.
A cena das tentações de Cristo no deserto são outro engano da película. O diabo não aparece, apenas se ouve a sua voz numa “demonofania”.
A verdade é que apesar do “status” de superprodução, não há uma única cena antológica. Infelizmente o cinema costuma tratar muito mal a Bíblia, com adaptações pouco fiéis e repletas de absurdos.
Talvez a melhor figura em cena seja a talentosa cantora espanhola Carmen Sevilla, que interpreta Maria Madalena mas pouco aparece. Royal dano, como São Pedro, está uma figura insignificante.
A lamentar também que a narração, feita por Orson Welles, não tenha sido creditada. Também a presença de Ray Bradbury na confecção do roteiro não está creditada, embora apareça na pesquisa.


imagem do google (capa do blueray)