"A canção de Bernadette"

A CANÇÃO DE BERNADETTE
Miguel Carqueija


Resenha do filme “The song of Bernadette” (EUA, 20th Century Fox, 1943). Produção de William Perlberg. Direção de Henry King. Roteiro de George Seaton. Com base na novela de Fraz Werfel. Fotografia de Arthur Miller S.C. Música de Alfred Newman.
Elenco:
Jennifer Jones (Oscar de melhor atriz com este filme) interpreta Bernadette Subirous
Linda Darnell....................................................Nossa Senhora
William Eythe...................................................Antoine Nicolau
Charles Bickford...............................................Padre Peyramale
Vincent Price....................................................Promotor Vital Dutour
Lee J. Cobb.......................................................Dr. Dozous
Galdys Cooper..................................................Irmã Maria Teresa Vauzous
Anne Revere.....................................................Louise Subirous
Roman Bohnen.................................................François Subirous
Mary Anderson.................................................Abadessa Joana
Patricia Morison................................................Imperatriz Eugênia
Aubrey Mather..................................................Prefeito Lacade
Blanche Yurka....................................................Tia Bernarde


Até onde pude ver, raros são os filmes de gênero religioso, que não deturpem de alguma forma o assunto. Um dos realmente bons, chegando ao nível de obra-prima, é sem dúvida este “The song of Bernadette” que retrata com respeito e seriedade a vida de uma doce santinha do século XIX na França, Bernadette Subirous, que com apenas 14 anos viu-se agraciada com a aparição da Virgem Maria, no pequeno povoado de Lourdes, França, em 1858.
A jovem atriz Jennifer Jones, que antes era conhecida como Phyllis Isley, tendo seu nome artístico mudado para esta produção por sugestão do cineasta David O. Selznick, com quem veio a casar, compôs magistral interpretação da adolescente pura, inculta, de acendrada fé e incomparável humildade, que foi agraciada com o contato com a Virgem Maria na Gruta de Masabielle. O sofrimento da menina, que teve de suportar a incompreensão, primeiro da família, depois do pároco, depois das autoridades locais de tendência anti-religiosa, e até da freira que fôra sua professora e depois a reencontra no convento, coloca bem claro o drama da alma inocente que sustenta a verdade mesmo diante de perseguições. À proporção que aumenta o afluxo de povo na gruta, acompanhando a menina santa (pois só ela via e ouvia Nossa Senhora), aumenta o rancor das autoridades, especialmente do caviloso promotor Vital, interpretado pelo marcante ator Vincent Price.
Bernadette, na sua simplicidade, sabe que não mente e resiste a todas as pressões para “confessar” a mentira. O médico não lhe vê sinais de loucura. De resto, quando Deus quer uma coisa, em vão lutam os homens contra a sua vontade. À ordem da Virgem, Bernadette cava a terra e de lá brota uma fonte que até hoje existe, e as águas milagrosas de Lourdes começam a exercer seu efeito salutar. Têm início as curas milagrosas de Lourdes, curas de doenças mortais, curas da alma. Décadas após, o cético médico Alexis Carrel converter-se-á diante de manifesto milagre. A Igreja Católica, aliás, talvez seja a única religião que submete os milagres ao exame da Ciência, tanto que de longa data existe uma comissão médica em Lourdes, que atestou muitos casos de cura sem explicação pela Medicina. A Igreja não promove milagres e quando estes surgem, é extremamente prudente; tanto que o Padre Peyramile, segundo consta e é mostrado no filme, chegou a escorraçar Bernadette com uma vassoura. Ele próprio se convenceu quando disse à menina que perguntasse à Senhora da gruta quem afinal era ela. A menina perguntou e retornou com a seguinte resposta da aparição:
“Eu sou a Imaculada Conceição.”
Bernadette conhecia alguma coisa de catecismo, mesmo assim era considerada atrasada (sofria de asma, faltava aulas); não sabia Teologia, não sabia o que era o dogma da Imaculada Conceição, aliás proclamado poucos anos antes, em 1854, pelo Papa Pio IX. Declara essse dogma que Maria foi concebida, por seus pais Santa Ana e São Joaquim, sem a mancha do pecado original, e além dela somente assim foram criados Adão e Eva, porque só depois pecaram, e Jesus Cristo, por ser o Verbo Encarnado. Mas entre os seres humanos gerados após Adão e Eva somente Maria ganhou este privilégio, por ser a futura Mãe de Deus na divina encarnação do Logos.
A Senhora avisou Bernadette que não lhe prometia felicidade nesta terra. Ela sofreu, rezou e amou — amou a Deus, a Nosso Senhor, amou a Virgem, amou a Igreja, amou a humanidade. E sofreu por todos. Ao se recolher ao convento ainda sofreu a incompreensão da freira Maria Teresa, sua ex-professora, melindrada porque, sendo ela uma religiosa de vida extremamente austera, que a si mesma mantinha cansada ao serviço da Igreja, não recebvera nenhuma graça extraordinária. Bernadette, que ultimamente vinha mancando, mostra-lhe enfim o próprio joelho, revela o tumor que padecia e vinha mantendo secreto. Isso espanta o médico: com aquele mal nos ossos a jovem niviça devia sofrer dores atrozes. Este fato comove finalmente o duro coração da Irmã Maria Teresa.
Outra cena memorável é quando, enquantop as autoridades locais interditam a gruta e a fonte para inibir as romarias, a própria Imperatriz Eugênia, esposa de Napoleão III, chega ao local para prestigiar o milagre.
Deus não pode ser vencido.
Esta obra-prima do produtor William Perlberg, do diretor Henry King e do roteirista George Seaton é beneficiada por interpretações excelentes e que mantém a todo tempo a seriedade da narrativa. O despojamento da família Subirous, com o pai François, antigo padeiro, sujeitando-se a descartar lixo hospitalar infecto, enquanto a esposa Louise também trabalhava duro para poder sustentar os filhos (além da irmã de Bernadette havia meninos menores), a pobreza do barraco, tudo isso é visto na expressividade da fotografia em preto-e-branco. As cenas são todas bem montadas, bem concebidas, fazendo desta produção, baseada em novela de Fraz Werfel, um trabalho realmente artístico em alto grau, além de ser uma película respeitadora em relação á religião e que não descamba para o ridículo de tantas fitas religiosas.

Rio de Janeiro, 10 de abril de 2016.