"Quase deuses" ou o sacerdócio médico

“QUASE DEUSES”, OU O SACERDÓCIO MÉDICO
Miguel Carqueija

Resenha do filme “Quase deuses” (“Something the Lord made” (“Algo que o Senhor fez”), Cort/Madden, EUA, 2004). Produção executiva: Robert W. Cort, David Madden, Eric Hetzel. Produção: Julian Krainin, Mike Drake. Direção: Joseph Sargent. Roteiro de Peter Silverman e Robert Caswell, com base no artigo de revista “Like something the Lord made”, de Katie McCabe. Música: Christopher Young. Fotografia: Donald M. Morgan, ASC. Elenco: Alan Rickman (Dr. Alfred Blalock), Mos Def (Vivien Thomas), Kyra Sedwick (Mary Blalock), Gabrielle Union (Clara Thomas), Charles Dutton, Mary Stuart Masterson (Dra. Helen Taussig). Feito para a televisão.

Drama baseado em fatos reais e realizado com bastante seriedade, refere-se ao primórdio hoje pouco conhecido da cirurgia cardíaca, através do trabalho pioneiro de dois médicos norte-americanos: o Dr. Alfred Blalock e seu assistente, o diletante Vivien Thomas, um jovem negro que, por não ter dinheiro para a faculdade (suas economias sumiram na Depressão com a falência do banco) não se formou como médico embora na prática fosse um. Vivien trabalhou com o Dr. Blalock a partir de 1930 e durante a II Guerra conseguiram afinal salvar a vida das “crianças azuis” que, por defeitos na relação do coração com os pulmões, viviam cianóticas.
Há neste belo drama uma forte mensagem em favor da tolerância e da fraternidade, pois mostra o preconceito racial que em plenos anos 30 e 40, no país que se jactava de ser o baluarte da democracia, obstava o reconhecimento de um gênio da cirurgia como Thomas, pelo fato de ser negro. Fica claro também que o Dr. Blalock nem sempre promoveu o reconhecimento de Thomas, embora não quisesse dispensar o seu auxílio. Thomas acabou sendo reconhecido muito tempo depois.
Se algum defeito podemos atribuir ao telefilme é o de tentar resumir tempo demais (41 anos) terminando por apresentar lacunas de tempo, de modo que a evolução dos acontecimentos não fica por demais clara. Há um certo teste para os nervos nas cenas de cirurgias com cães e seres humanos, pois aparece sangue; mesmo sabendo ser simulações, não é fácil assistir essas cenas. Detalhe relevante é a dedicação da esposa de Vivien, que o acompanha e apoia nos momentos mais difíceis, com amor e presença. A restante família de Vivien também está presente através dos anos. A verdade é que Vivien e Blalock quebraram um tabu da Medicina, o de que não se podia operar o coração sob pena de o paciente morrer.
As interpretações estão muito boas. A de Mos Def como Vivien é bastante convincente. Sóbrio, sério, esforçado, consciente do próprio valor, periodicamente sentindo-se frustrado ante a conspiração do universo contra ele.
Uma homenagem também merecem os cãezinhos, muitos dos quais morreram pela humanidade. O ideal seria jamais precisar utilizar cobaias. No caso em questão, o filme pelo menos mostra que os dois médicos estimavam seus cães de experiência.
Um filme humanista e de alta qualidade.

Rio de Janeiro, 5 de julho de 2016.



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