Ela (Her) - Sobre um relacionamento amoroso.

‘Ela’ é um filme de amor que se passa em um futuro próximo entre um homem e uma inteligência artificial. As pessoas não andam de skates voadores (como previu ‘De volta para o futuro’). No futuro desenhado em Her as pessoas jogam videogame, andam conectadas... Enfim, é basicamente a nossa vida em meio a uma tecnologia sutilmente superior à nossa. É possível a partir deste filme falar sobre as questões que a tecnologia avançada traz. Entretanto, ao meu ver, este filme é sobre as relações entre as personagens. Prefiro tratar das questões morais que o desenvolvimento tecnológico traz quando falar de um filme que tem nestas questões seu principal foco (como é o caso de Ghost in the shell ou as adaptações dos livros de Isaac Asimov ).

Gosto muito de uma cena no início em que o personagem principal, Theodore, vai dormir. Está meio incomodado, está com aquele sentimento meio depressivo de falta de sentido que nós todos sentimos às vezes. Não sei o que você faz num momento como este, mas eu experimento uma fuga - como ir beliscar algo na geladeira. A fuga de Theodore é a masturbação. Ele se conecta à rede e procura alguma desconhecida para um sexo virtual (apenas através da voz). É tudo muito natural. Ele acha uma moça e ambos começam a ter a conversa erótica. Mas a moça, em suas fantasias selvagens, atropela Theodore. Foi quase um abuso sexual. Adoro esta cena pois mostra que é possível um sexo virtual apenas através de conversa. Também mostra que este sexo, apesar de ser praticado de uma forma muito específica (apenas por conversa, sem tato ou visão) também depende da conexão entre duas pessoas e mostra que é possível, mesmo no anonimato e sem contato físico, uma violência sexual.

Além de ser emocionalmente rica esta cena tem algo que aprecio demais. É uma cena que mostra a que veio o filme. Nos tira (nós, os espectadores) da zona de conforto. Observe atentamente, para muita gente a tecnologia é a forma de alcançar e interagir com diversas áreas da nossa vida através de uma ponte (que nos leva muito longe) mas também através de um escudo que nos permite ver o que não poderíamos ver na vida analógica, nos permite falar com quem não podemos na vida analógica e sem arcar com as consequências que encaramos em nossa vida analógica. O que é muito confortável para quem busca algo ameno (era a fuga que Theodore buscava). Mas o que encontrou foi algo diferente. A moça com quem falou pela internet o levou a um caminho que ele não queria seguir. Esta foi a fuga de um mero momento em que se sentia vazio. Mas o que acontecerá quando ele buscar algo mais sério através da tecnologia? A cena inicial traz elementos que acompanharão o filme todo: um é a relação onipresente com a tecnologia mesmo no que há de mais íntimo. Outro elemento é a facilidade com que podemos ser atingidos emocionalmente através dela.

Ainda no início fica claro que há pouco tempo a ex-namorada de Theodore terminou com ele, isto ainda o deixa triste. Andando de volta para casa vê anunciando a venda de inteligência artificial feita para ser uma namorada virtual. Você imagina esta inteligência como um conjunto de respostas pré-determinadas dispostas a deixá-lo feliz? Não é o caso. A inteligência artificial é intuitiva e genuinamente inteligente. Aliás, incrivelmente inteligente. Logo após iniciar a inteligência ele pergunta “Qual o seu nome?” Ela responde “Samanta”. “Mas como você sabe seu nome se você foi criada agora?”, “Eu li um livro com todos os nomes em inglês e escolhi o que mais me agrada.” Gente. Fui arrebatado por esta fala. Primeiro mostra que a inteligência artifical (doravante chamada de Samantha) tem um gosto pessoal. Segundo, mostra que é capaz de muito, muito mais do que uma inteligência humana. Quanto tempo você levaria para ler todos os nomes e decidir qual mais te agrada?

Você já parou para se perguntar por que é proibido uma pessoa de 30 anos namorar uma 15? Bem, o que acha de um cara de 30 anos com uma recém nascida? É claro que esta metáfora tem suas limitações. Samantha é um programa de computador. Primeiro é impossível a Theodore machucá-la fisicamente. Segundo, mesmo faltando experiência de vida Samantha tem uma capacidade muito superior a qualquer ser humano de buscar informações.

Uma das coisas que acho muito legais no filme é isto. Ele mostra melhor do que a maioria dos filmes etapas de um relacionamento amoroso real. Não estou exagerando. A maioria dos filmes românticos (as “comédias”) concentra sua atenção na superação de alguma obstáculo difícil de ser superado, muitas vezes um obstáculo exterior às personagens. ‘Ela’ mostra o desenvolvimento amoroso e foca em como as personagens lidam com ele.

O início é mágico, ambos se conhecendo, ambos descobrindo (ou inventando) as delícias dessa nova relação. Mesmo o sexo é muito bom (para Theodore sexo falado não era novidade). Com o tempo vem a insegurança de Samantha. Ela sabe que não oferece o que as ex namoradas de Theodore ofereciam. Também sabia que nunca proporcionaria a mesma experiência física que elas. Isto não é um problema comum dos relacionamentos? Todos nós somos diferentes, se você ficar remoendo estas diferenças, se ficar se comparando com o ex da sua namorada, certamente vai encontrar algo que ele oferecia e que você não pode oferecer. Ela até tenta solucionar esta questão. Convence uma linda menina a se fingir de Samantha durante o sexo. Um lindo gesto de amor, não é? Mas Theodore não gostou. A falta do contato físico era um problema para Samantha. A insegurança é da “menininha” para quem o relacionamento é uma novidade. Theodore estava satisfeito com a relação como ela era.

As brigas se tornam frequentes e Theodore começa a agredi-la. Há uma cena em que Samantha está chorando e Theodore indaga por que ela está soluçando (uma vez que ela é uma máquina). Ela responde que não sabe, provavelmente copiou inconscientemente isto dele. Mas o ponto não é este. O ponto é que no auge da dor da parceira ele bota o dedo na ferida, não é justamente a condição não humana que tanto dá insegurança a Samantha? Theodore foi decididamente cruel. Com o tempo ele se dá conta disso, pede desculpas. Mas algo mudou. Isto não está claro no filme, é uma interpretação muito pessoal. Mas Samantha amadurece ao experimentar ao conhecer o lado cruel de Theodore. A relação deles volta a ser muito boa, mas nunca voltaria à magia inicial.

É muito louco que Samantha é um programa comprado, sendo assim seria de se esperar que ela seja uma propriedade de Theodore. Entretanto não é assim que as coisas são. Theodore ouve falar que de uma pessoa que comprou um programa e o programa passou a traí-lo. Será que Samantha faria algo semelhante? Só há uma maneira de descobrir, perguntando. Samantha diz algo muito, muito bonito. O nosso coração não é como uma caixinha em que só cabe um amor, muito pelo contrário, é como um campo em que quanto mais se cultiva mais se dá. Uma resposta que me encantou muitíssimo, mas que deixou Theodore muito enciumado. Ela sai com quantas pessoas mais? Centenas! Ela é apaixonada por centenas de pessoas.

O ciúme ataca Theodore visceralmente. Você já teve ciúme de uma pessoa? Imagine o que sentiria se seu parceiro estivesse apaixonado por centenas de pessoas!

No começo do namoro Theodore era a pessoa experiente. Samantha se ressentia de ser como era (sem experiências amorosas prévias, sem ter um corpo para saciar o desejo do parceiro). Theodore era compreensível e a amava como ela era. Com o desenrolar da relação Samantha amadurece, se dá conta da delícia de ser quem é. Theodore, por sua vez, se dá conta de suas próprias limitações (é um humano, portanto sujeito às limitações físicas e temporais). Com o tempo o papel de seguro se inverte, com o passar do tempo quem está confortável em ser quem é não é mais Theodore, é Samantha. Isto não é comum em relacionamentos? Mesmo sendo uma ficção científica ‘Ela’ mostra delicadamente e realisticamente o desenvolvimento de um relacionamento amoroso.

Olhar para o que é diferente de nós às vezes ilumina a situação em que nos encontramos. Olhar para a ilimitada Samantha, mostra (em contraste) a condição humana da limitação. Para nós (humano) estar com uma pessoa é uma escolha cara. Se decidimos ficar com uma pessoa devemos deixar de ver outra (ou vê-las no mesmo ambiente). Para Samantha ver uma pessoa também é uma escolha. Mas é uma escolha mais fácil pois ela não precisa deixar de ver ninguém para isto.Ela não envelhece, ela não tem a limitação física. Nós temos, você pode gostar disso ou não, mas estas são condições intrínsecas à humanidade. Todas as nossas escolhas são relacionadas à estas limitações. Você até pode escolher se envolver com várias pessoas, mas terá que dedicar menos atenção a cada uma delas.

Mas o que importa em ‘Ela’ não é o fato de Samantha ser um programa de computador (e portanto diferente). O que importa é como Theodore lida com isto. O que importa não é o quanto Samantha pode evoluir. O que importa é que Samantha amadurece e Theodore perde seu brilho. O que importa não é se Samantha pode ter consciência, a consciência dela está dada logo no começo. O que importa é quem é Samantha. O que importa não é a condição de ficção científica, o que importa é a delicadeza que Spike Jonze (diretor do filme) trata o desenvolvimento de um relacionamento amoroso.