"The Marvelous Mrs. Maisel"

"The Marvelous Mrs. Maisel"


"Gosto de ter coisas para fazer, mas odeio ter que fazer coisas”. Mesmas palavras em ordem diferente, significativa mudança de perspectiva. A primeira engloba opção, a segunda, exigência.

Assistir esse trabalho está em definitivo na alternativa número um, caso você consiga acessá-lo, seja por qual meio for.

Miriam "Midge" Maisel e Joel Maisel são jovens, digamos na casa dos vinte e poucos, tem um casal de filhos pequenos, estão em união estável há 4 anos. Bem de vida, ela judia, do lar, ele executivo insatisfeito nutrindo o sonho de um dia se tornar comediante. Local - Nova Iorque. Ano - 1958. Mrs. Maisel é uma super parceira, acompanha o marido nas espeluncas onde se apresenta, anota idéias para possíveis piadas, faz os arranjos dos horários, além de cuidar dos filhos, da casa, etc., até a noite em que a performance dele vai por água abaixo e quando retornam ao lar Joel entra em crise, diz que sua vida precisa ser mais do que isso, faz a mala, confessa ter uma amante e se manda. Atônita, Midge vai até o apartamento dos pais, moram no mesmo prédio, conta o ocorrido, recebe deles uma reprimenda (1958…), sai de lá usando um sobretudo por cima da camisola, toma o metrô com uma garrafa de etílico debaixo do braço, torna a casa noturna e num rompante de embriaguez e emoções à flor da pele faz um show de improviso memorável e pronto. Este é o primeiro episódio, cerca de 50 minutos de duração.

Criação de Amy Sherman-Palladino lançada em 2017, faturou alguns troféus, dentre os quais o Globo de Ouro, "The Marvelous Mrs. Maisel” trata-se de um desses achados que se ressaltam na vastidão da penúria argumentativa do segmento áudio visual, seja travestido de cinema propriamente dito, documentários, seriados.

Rachel Brosnahan, a esposa abandonada que num repente descobre a veia do stand-up faturou Melhor Atriz do Globo de Ouro no âmbito seriado. Prêmio mais do que merecido.

De cara fica estabelecido que tudo que o espectador quer é ver Midge no palco, talvez porque ali desponta o local onde o texto sobe*, ali ela transforma a vida desabada (separação, crise financeira, filhos para criar, medo do futuro) num olhar super dotado de sagacidade indignada e cômica, por certo, definitivamente a comicidade inteligente, arguta, maleável, certeira. Aquela que alivia o fardo.

*(Exceto nos momentos em que autora faz a personagem derrapar, intencionalmente, visto que a ciência do "espetáculo de humor executado por apenas um comediante" carece de prática.)

Também no início Midge trava amizade com Susie Myerson, uma espécie de Danny DeVito feminino cuja missão, devido a longa bagagem, consiste em sinalizar para a dona de casa seu talento extraordinário para o métier de comediante. Consumada a sinalização, Susie torna-se um misto de agente, treinadora, amiga e conselheira

Amy Sherman tabulou encorpada pesquisa para confecção de sua trama, lotada de licenças poéticas, a começar pelo local onde Susie trabalha, o histórico The Gaslight Cafe, (fechado em 1971), onde ocorrem as primeiras apresentações de Mrs. Maisel. Daí pra frente, dentre outras, a personagem se encontrará com outro ícone do universo proposto, Lenny Bruce, sua concha perceptiva então migra do chique Upper East Side ao elétrico Greenwich Village e ocorre o tráfego nos antros de agentes, empresários, roteiristas, clubes noturnos, o final da década de 50 na capital do mundo, sinto dizer, vai emergir de muitas maneiras numa produção mais esmerada e vistosa do que vários dos concorrentes ao Oscar 2018.

Woody Allen fez stand-up e uma fragrância do seu legado paira nos 8 episódios da série. É de se ruminar se comédia, ou antes esse gênero, seria uma subcultura, e se seriados são uma forma de entretenimento assim tão inferior a Sétima Arte.

Apesar de alguns pecadilhos, o conteúdo de cada fascículo, cuja maior parte foi escrita e dirigida por Amy Sherman-Palladino (a menor por Daniel Palladino, marido dela, igualmente produtor de TV), ganha configuração extra com ares de romance, pois nem só de palcos vive a protagonista, que vai trabalhar na ala de cosméticos da B. Altman and Company, luxuosa loja de departamentos novaiorquina fundada em 1865 e extinta em 1990. Midge tem pais, muda-se para a casa deles com as crianças, tem memórias doces de um casamento (aparentemente) perfeito, um irmão mais velho camarada, amigas, convicções.


Desnecessário comentar que nossa realidade anda sobrecarregada de polarização, ira, contendas sanguinárias, mentiras deslavadas e tolices discutidas com vozes fervorosas baseadas em razões equivocadas, senão minguadas ou mesmo vazias. Midge passa ao largo da consciência de massa, ou se preferir, da etapa angustiada dos que perdem o chão e só encontram ladeira abaixo. No início da sua saga ela descobre o gênio da lâmpada - aquele que leva alegria inteligente aos de mesma ressonância - só que ela terá que fundi-lo em si mesma.


"Imaginem uma cultura que não mais seja atraída para o drama e a morte, mas onde os filmes e livros mais vendidos reflitam uma nova maturidade de contar as histórias, onde os heróis sejam sempre aqueles que pensam de maneiras que criam a solução. Esta seria a mudança de jogo". (Kryon).


"The Marvelous Mrs. Maisel” não deixa de ser também um tributo a esse tipo de arte, lembrando que a autora é filha de um ator veterano já falecido (Don Sherman, trabalhou no “Rocky: Um Lutador”), e escreve para TV desde os anos 90. O texto exalta com sabedoria e assim longe do fanatismo aqueles que levaram outros a rir e a pensar fora da caixa há mais de meio século - Mort Sahl, Bob Newhart, Lenny Bruce, Red Skelton, Bob Hope, e as pioneiras Joan Rivers e Totie Fields, bem como explica de modo requintado como fazer para se tornar um iniciado nesta seita, caso, é claro, exista talento para tanto. Tem a ver com presença, e sobretudo, com manter a energia se movimentando.
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 15/02/2018
Reeditado em 01/06/2020
Código do texto: T6254662
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