"Crash - No Limite" (Crash, Lions Gate Films Inc., 2005)

Geopolítica e sentidos humanos têm muito mais em comum do que grande parte das pessoas crê. Jargões como "Visão de Estadista", "Tato Diplomático", "Faro Apurado para a Condução da Política Econômica" são largamente difundidos e utilizados no cotidiano. Até mesmo o paladar - A China e seu Apetite Voraz - não resiste às sinestesias bastante indigestas do mundo Capitalista.

E é justamente no cefalotórax do Capitalismo que os sentidos têm causado incômodos imprevistos, notadamente o do paladar.

Durante as últimas décadas, os EUA viveram um momento de forte atividade estomacal, seus intestinos trabalhando a todo vapor. O Delgado filtrava os trilhões de dólares e os fazia injetar no mundo financeiro; o Grosso apoderava-se de toda a imundície resultante, que era calmamente evacuada mundo afora. Incapazes de enxergar além do umbigo (e a pança, que não parava de crescer), arrotavam prepotentemente sua hegemonia, e os outros, de cabeça baixa, agüentavam.

E o gosto experimentado era sempre o da vitória, d'O meu é melhor que o seu. A imposição de sua cultura atingiu o cume, e em todos os aspectos, seja nos esportes ou na mídia, a América era uma unanimidade, verdadeira águia voraz sobre uma massa de minhocas humanas que eram, a um tempo, deslumbre e pavor.

Mas tal resignação não haveria de ser eterna, e em 11 de Setembro de 2001 os Estados Unidos engoliram um grande osso de galinha. Aliás, dois grandes ossos, por sinal muito bem passados pelo calor insuportável das explosões e incêndios. Engasgada, a Todo-Poderosa asfixiou-se: o Governo reestabeleceu a velha censura republicana, proibindo músicas (como Another One Bites the Dust, do Queen, creiam se puderem) e orientando a gigantesca e influente indústria do cinema a exaltar seus heróis nacionais. A censura seria a água limpa e fresca, que faria-os finalmente engolir as Torres Gêmeas, ossos que sustentavam o Corpo Financeiro, trazendo, ao fim, ar puro.

Mas milagres acontecem, pelo sim ou pelo não; e o que era para ser água tornou-se, quem sabe por obra de Allah, veneno. Ao invés de um comportado bon apetit, os americanos reagiram vomitando suas vísceras. O improvável aconteceu: o Coração Financeiro do Planeta foi trespassado por um Boeing comercial (versão mais moderna e letal do que as antiquadas lanças romanas), e de seu sangue e água nasceu uma nova arte americana, eficiente em sua forma de imitar a vida. Crua e vermelha, a expressão artística ianque a desnudar toda a hipocrisia vivida pelos seus. Veio à boca, de súbito, um gosto de mediocridade, de medo, de espanto. De Napalm. De morte.

Tal complexidade de sabores só poderia estar contida em um vinho muito antigo. Na verdade, este existe e data de cinqüenta anos, preparado com o sangue dos que morreram em Hiroshima. A bebida que, já em sua formação, brindou o surgimento da Superpotência, trazia em sua fermentação muitas surpresas, que só passariam a encorpar-se ao sabor ao longo de todas as trapalhadas unidenses da segunda metade do século passado.

Fez-se, pois, o vinagre; e tudo o que estava engarrafado e esquecido foi tomado por todos. A Nação inebriou-se dos seus preconceitos e inseguranças; e o Cinema, ao invés de reafirmar o poderio americano, rendeu-se aos receios de seu próprio povo, e explodiu em desabafo. A exaltação dos heróis deu lugar à reconhecida covardia dos cidadãos; A intervenção em assuntos exteriores, antes enaltecida pelas Telas como puro espírito de caridade, desmascara-se em uma irracional e hedionda corrida por recursos naturais, que o País provou administrar com a mais absoluta incompetência. A figura indestrutível de um Presidente Roosevelt colidiu frontalmente com as macaquices do inseguro e mimado G. W. Bush. O cheiro de tanta podridão já não é mais suportável, pois já não se pode viver com as aparências da invulnerabilidade.

Explodiram documentários, vistos e ouvidos por cada vez mais pessoas ao redor do mundo, e de pronto a identidade americana (tudo o que se considerava o legítimo american way of life) mostrou-se uma enganação. Vieram documentários como Super Size Me, mostrando a influência nefasta do maior fast food do mundo; The Corporation, que escancara o lado mais podre e devorador das multinacionais americanas, sem as quais o país não teria chegado onde chegou; e os explosivos Firenheit 9/11 e Bowling for Columbine, do cineasta Michael Moore que, expondo a covardia de seu povo, levou ao prêmio máximo da Indústria do Cinema a insatisfação do mundo perante os EUA.

Filmes comerciais como "A Última Noite" (25th hour), "A Última Ceia" (Monster's Ball), "Chicago" (Chicago), "Sob o Domínio do Mal" (Manchurian Candidate), só pra citar pequena fração deles, têm basicamente duas coisas em comum: uma, são todos posteriores a 11/09/2001; duas, revelam o que há de mais imundo na cultura ianque. Um mundo de hipocrisia; uma SinCity de trezentos milhões de pessoas. Nada se cria, tudo se devora; um país de seio e moral protestantes, mas cujas ações são a mais profunda manifestação egoísta que, decerto, não pode vir de Deus.

E por falar em Deus, a intolerância religiosa e a xenofobia bem poderiam lembrar a Europa ultra-direitista. E o preconceito racial, que sempre existiu abertamente em solo pátrio, abriu suas portas, via mídia, para o mundo, de forma assustadora, nua. Para todos que não moramos na Norte-América, esta é uma época, talvez única, de abrir os olhos para os verdadeiros Estados Unidos, antes que eles construam um outro castelo de falsidades.

Esta, portanto, é a minha crítica sobre o filme Crash - No Limite. Quem não entendeu nada do que eu escrevi, assista ao filme, e então estas sórdidas palavras farão um mínimo de sentido. E falando em sentido... não se espante se, ao ver e ouvir o filme, você sentir o gosto amargo de uma nação à beira do colapso.

Thiago Salinas
Enviado por Thiago Salinas em 01/11/2005
Código do texto: T65973