O Paradoxo de Maria José (Filme Vida Maria)

(Sobre o Curta-Metragem "Vida Maria", de Márcio Ramos)

https://www.youtube.com/watch?v=yFpoG_htum4

O PARADOXO DE MARIA JOSÉ

Maria José é uma pessoa, um ser humano. Por isso tem necessidade de comunicar-se com o outro e de ter contato com o mundo. Intrinsecamente, como pessoa, ela não está condicionada exclusivamente por impulsos ou por seu meio. Dito de outra forma, Maria José é dotada da liberdade da vontade, seu pensamento não está aprisionado e, ao menos no sentido estrito, ela seria a única responsável pelo que ela é.

A vida de Maria José é retratada no filme curta-metragem “Vida Maria”. Nela, a sua trajetória nesta existência é absolutamente a repetição da vida das suas ancestrais, outras tantas Marias que, como ela, a terem a primeira curiosidade e contato com a educação do ler e escrever, a tiveram cerceada em nome de uma atividade “mais importante” das tarefas daquela vida no agreste nordestino. A crueldade na história é que Maria José, na vida adulta, repete a castração e o tolhimento da personalidade de Maria de Lourdes, a sua filha, numa manutenção do ciclo vital familiar e contribuindo para perenizar a estagnação evolutiva da sua família.

O filme é excelente como instigador da reflexão sobre esta realidade e é muito usado em análises pedagógicas que procuram, apenas para apor um exemplo, chamar a atenção dos pais neste processo, ou das instituições estatais.

A abordagem aqui neste texto, no entanto, é do viés antropológico. O desafio proposto é no condicional e de cunho existencialista, a se investigar que atitudes poderiam ter sido tomadas por Maria José para superar as restrições do seu ambiente social e “realizar os seus valores individuais mais nobres”. Ora, a nosso ver a questão traduz-se em autêntico paradoxo, a ser necessário empreender um conjunto de ações que são contrárias à compreensão aprendida de toda uma maioria no seu ambiente, como intenta-se demonstrar.

Como visto no início deste escrito, Maria José é um ser humano e mostra a avidez pelo aprendizado. Não lhe acomete o determinismo e ela tem a possibilidade de agir de outra maneira, a possibilidade de construir-se pela sua liberdade da vontade. Apesar de todos os vínculos do meio social, do patrimônio genético e das características históricas em que está inserida, Maria José não está irremediavelmente condicionada por eles e tem as condições de planificar e executar a idealização da sua vida.

Neste sentido, Maria José poderia dar azo á sua aspiração de aprendizado, continuar e insistir nos seus estudos. A abertura da consciência neste processo fornecer-lhe-ia a inspiração de tentar outras oportunidades à sua feição para a sua livre decisão de que caminhos percorrer. A capacidade espiritual de poder lutar por uma causa, a sua causa nobre, um ideal a sua ilusão daria sentido à sua existência. É do exercício da liberdade que se fala, deste essencial atributo, constitutivo antropológica da pessoa. Ao experimentar o “progresso” Maria José teria o espectro aumentado na compreensão da existência.

Já que o “novo saber nasce do envelhecimento do saber anterior”, como nos ensina o emérito educador Paulo Freire, Maria José estaria colocando a sua espontaneidade a serviço do rigor científico, o que lhe permitiria avançar sobre os limites do círculo vicioso para grassar a espiral evolutiva do círculo virtuoso. E, assim, ela não “renunciaria à capacidade de se surpreender diante do mundo” (Paulo Freire).

Tudo muito bonito, não estivéssemos em face da categoria filosófica “mundo da vida”.

E aqui entramos no outro aspecto na análise da existência de Maria José. Como pessoa, como ser humano, ela não é um ser auto-suficiente, necessita não só da natureza mas também das outras pessoas. Tanto a sua dimensão espiritual como a física estão comprometidas na inserção da sua comunidade onde ela “surgiu” como ser social. É nela que Maria José vivencia os impedimentos da liberdade, desde os psíquicos até os físicos que ela mesma deixou-se alienar inconscientemente.

Este é o lado perverso no que se vislumbra do futuro de Maria José, em quanto e como ele poderia ser idealizado. Maria José é uma criança de apenas 5 anos, quando é cerceada nas aspirações de sua curiosidade e entra no processo de redução à condição de coisa, de um número na sua sociedade. Neste momento da vida, Maria José é dependente demais do ambiente natural e social, e muito alta é a probabilidade de fracasso de qualquer projeto pessoal.

Na ponderação dos dois cenários, ao se passar a faca analítica no paradoxo do ser humano Maria José, a balança lhe é cruel e desfavorável. Falta à sua comunidade a linguagem que permita discutir os seus códigos, a sua realidade e despertar uma reação nesse contato com o outro na direção do exercício pleno da vida.

Em arremate, caberia a Maria José o papel de, ao questionar os seus valores contemporâneos, ser o instrumento de permitir à sua Maria de Lourdes a abertura às novas possibilidades do ser humano. Ela mesma estaria, assim, superando desafios e dando valor á sua própria existência.

Um belo filme e uma excelente oportunidade de reflexão.

Graco Jakal
Enviado por Graco Jakal em 25/08/2019
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