História de um casamento, de Noah Baumbach

História de um casamento, de Noah Baumbach

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Em 29 de setembro de 1989, no Brasil, o então constituinte Roberto Campos queixava-se em artigo de jornal da proeminência que a Constituição que se discutia estava prestes a dar aos advogados. Advogados, de acordo com a Constituição, são essenciais à administração da justiça. Campos lembrava que todos queríamos nos livrar desses profissionais, buscando os tribunais de pequenas causas e os desquites amigáveis. Chega de advogados.

Essa impressão é perfeitamente aplicada à “História de um casamento”, filme dirigido por Noah Baumbach. De um divórcio entre um diretor de teatro e uma atriz extraiu-se, entre outros assuntos, uma fortíssima crítica ao sistema jurídico norte-americano. Esse é um dos pontos centrais do filme. Começo com esse tema.

O espectador brasileiro deve levar em conta que nos Estados Unidos aos estados é facultado estabelecer regras próprias de direito de família. Não há um código civil de aplicação comum no país. Charlie (protagonizado por Adam Driver) e Nicole (protagonizada por Scarlett Johansson) vivem em Nova Iorque, com o pequeno filho. Nicole, no entanto, é de Los Angeles, para onde vai com a criança, disposta a seguir carreira em séries de televisão. Em Los Angeles mora a mãe de Nicole, dominadora e autoritária, ainda que simpática e benevolente. Esse movimento faz com o divórcio deva ser processado na Califórnia, o que desorganiza a vida da Charlie, além dos custos com frequentes viagens e necessidade de comprovar residência, isto é, se Charlie tivesse alguma pretensão com a guarda da criança. E tinha. É o traço mais marcante de seu caráter. Ele também tem valor.

A disputa judicial é violenta. As questões levantadas (muitas delas de discreta intimidade) são debatidas entre os advogados, o que faz como que Charlie e Nicole se transformem em passivos espectadores de suas vidas, de seus erros, e de seus desencantos. A lógica do teatro, que conheciam, se inverte. No teatro da justiça (cômico na arrogância e trágico nas implicações práticas), que desconheciam, deixam o proscênio e juntam-se à plateia. São estrangulados financeiramente com os custos com os advogados e com as taxas judiciais. Chega-se a um ponto no qual perdem todo o controle da situação. A intervenção dos advogados, em forma de falsete, revela a indústria da litigância judicial nos Estados Unidos. É um embuste em forma de direito.

Quem conhece um pouco de história do cinema vê alguma referência à guerra que Dustin Hoffmann e Meryl Streep travaram em um clássico de 1979. A diferença é que Hoffmann e Streep se odiavam ao extremo. Charlie e Nicole, nesse aparente “remake” ainda permanecem com alguma ternura. O espectador pode ter a sensação de que diferenças pessoais poderiam se acomodar, se houvesse um pouco de bom-senso.

Quem conhece história do cinema ainda pode ver Alan Alda, em seus 84 anos, lutando contra o Parkinson. Protagoniza um advogado ineficiente. Há uma cena entre Alda e seu cliente (Charlie) na qual o Parkinson fica latente. Comovente seu esforço para atuar.

A sessão com o mediador (aqui seria uma sessão de terapia de casal) tem como pano de fundo impressões que Charlie e Nicole escreveram um sobre o outro: inegável que se gostam, muito. A recusa de Nicole em ler seu texto, no entanto, é o ponto de partida para a dissidência.

A cizânia aberta por Nicole é que levou a questão à competitiva advogada que a assessorou. Ao longo da batalha judicial as razões de Nicole se revelam. Deve-se reconhecer nessa personagem a mulher sufocada pelo marido, cujo ego e proeminência são muito fortes. Ela sequer escolheu os moveis da casa. Ela quer respirar. Ele quer ter o direito de lutar por seu espaço, sem interferências, apadrinhamentos ou intervenções do marido. Tem seus méritos. É uma atriz talentosa. Em forma de catarse, justifica-se com a necessidade que tinha de morar na Califórnia. Sua mágoa: Charlie lhe negou a oportunidade de juntos viverem em Los Angeles. E é difícil dialogarmos com mágoas. Isso é para santos, abnegados, monges que compreendem a condição humana.

A mágoa é o inverso do perdão. Não se consegue tomar partido. Charlie é um homem de seu tempo. Nesse filme romperem-se vários clichês. A advogada de Nicole deixa explícito que o homem que disputa judicialmente com a mulher na década de 2010 é diferente dos padrões passados. Por isso, utiliza de outras técnicas de enfrentamento, em nome de sua cliente. O esforço de Charlie para salvar (pelo menos) a relação com o filho é comovente. Está perdido. A usarmos uma metáfora da mais pessimista das escritoras brasileiras (Rachel de Queiróz) sente-se como um bode em uma canoa.

O espectador vê-se em Charlie e em Nicole; estamos na tela, ao mesmo tempo, nas duas personagens. Ambas resumem nossas trajetórias conjugais (vividas ou imaginadas), porque revelam nossos erros, excessos e, principalmente, nossa inata incapacidade de doação e de entrega. Essa só existe, parece-me, quando nossa imagem é refletida no companheiro (a). Essa imagem pode desvanecer. Em termos muito simples, quando o desejo é satisfeito, quando o interesse no outro (a) é liquidado, vai-se a vaidade até então alimentada. A salvação pode estar na construção de novas referências e formas de compreensão. Mas isso exige tempo, paciência, resiliência, recursos que nos faltam nos tempos de redes sociais.

Tenho a impressão de que Nicole tomou a iniciativa de retomar seu mundo próprio. Charlie resistiu, mas ao fim concedeu. Não há o que se fazer em relação aos fatos que não temos controle. O amor não se impõe, o desejo não se determina por decreto e o respeito não se conquista com ameaças. O desate do filme, que não posso revelar, é talvez a surpresa que nos faz duvidar se a lógica do cinema é permanente ou se é um desafio aos tempos. Um filme impressionante. Para quem amou. Para quem acredita que foi amado. E, principalmente, para quem quer continuar amando.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 03/02/2020
Reeditado em 03/02/2020
Código do texto: T6857542
Classificação de conteúdo: seguro