Era uma vez em Hollywood, de Quentin Tarantino

Era uma vez em Hollywood, de Quentin Tarantino

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

No dia 4 de abril de 1968 o pastor e ativista norte-americano Martin Luther King foi assassinado no sul dos Estados Unidos. Imagine o leitor dessa resenha o enredo de um filme que caminhe até o assassinato de Luther King, mas que, sem afastar o pastor da narrativa, desconstrua todo o desate histórico real. Mais. Nesse enredo, os protagonistas centrais desse imaginário filme (que não seria sobre Luther King) participam ativamente do enredo real, transformando-o, radicalmente. E como brinde o espectador teria ainda uma releitura sobre a luta pela igualdade civil nos Estados Unidos, com impressionante reconstrução da época.

O leitor dessa resenha substitua então Luther King pela atriz Sharon Tate, assassinada em 9 de agosto de 1969, em Los Angeles. É o que Tarantino fez em “Era uma vez em Hollywood”. Então casada com Roman Polansky e grávida de nove meses, Sharon Tate foi brutalmente morta por um grupo de hippies que seguiam a seita de Charles Manson, a chamada “família Manson”. Esse é o ponto para onde leva “Era uma vez em Hollywood”, filme cheio de referências à história do cinema e, especialmente, sobre o ano de 1969, quando já se vivia desgaste e desmoronamento de um movimento que pregava paz e amor, e que proclamava que se devia fazer o amor, e não a guerra. O assassinato brutal de Sharon Tate é indício do fim de uma utopia.

Com essa referência, “Era uma vez em Hollywood” é um filme que também discorre sobre a amizade, sobre as dificuldades de uma carreira de ator (menos glamorosa do que se supõe), sobre a frustração de doublés, sobre a decadência de astros que dependem do mercado e dos consumidores de cinema. A indústria do entretenimento é (ainda) uma das mais portentosas dos Estados Unidos.

O espectador sente-se efetivamente em Los Angeles, em 1969. A trilha sonora é um monumento melódico à música pop. “California Dream”, do “The Mammas and the Papas” não deixa de comparecer. Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e Cliff Buff (Brad Pitt) passeiam pelas ruas de Los Angeles. Veem-se vários cinemas, com respectivos filmes em cartaz. Algumas vezes vê-se “Romeu e Julieta”, pela data, certamente, na versão de Franco Zefirelli. Há uma cena de uma festa, ocorrida na mansão de Huff Heffner, o dono da revista Playboy. Nessa festa, a turma do “The Mammas and the Papas” e, entre outros, Steve McQueen (que morreu no México, em 1980, lembrado pelos papeis de piloto de corrida que protagonizou). McQueen aponta Polanski e discorre sobre triângulos amorosos que agitavam as fofocas e ilações maliciosas.

Dalton (DiCaprio) é uma personagem de algum modo decadente. Emotivo, chora, chora muito, desespera-se com a qualidade dos papeis que lhe atribuem. Buff (Pitt) – doublé de Dalton – é o faz tudo do patrão; como se afirma no filme, é mais do que um irmão e, menos do que uma esposa. Há também a presença de Al Pacino, que protagoniza um produtor-mandachuva de Hollywood.

“Era uma vez em Hollywood” é um filme sobre cinema, com vários enredos que se entrelaçam. É exemplo definitivo da metalinguagem, quando expressão e conteúdo se acomodam em uma narrativa única. Essa expressão remonta a Rudolf Carnap, e aos chamados positivistas lógicos do Círculo de Viena, que exploraram o conceito na década de 1920. É a arte falando dela mesma, o que se constatava inicialmente na literatura. Em “Era uma vez em Hollywood” discorre-se sobre cinema. Há uma grande quantidade de alusões, o que exige atenção e paciência. A reconstrução da época é um dos pontos altos do filme. A lentidão da narrativa (ainda que o espectador seja recompensado no fim) é seu ponto mais crítico.

Do ponto de vista da reflexão histórica “Era uma vez em Hollywood” é um filme sobre um tempo que se foi, que se sente saudade, mas que se teme também. Há um saudosismo latente. O passado é construído como um romance. O apego excessivo ao passado, penso, é uma forma de negativa ou de resistência ao presente. Pode ser essa, entre outras, uma chave interpretativa para esse filme encantador.

“Era uma vez em Hollywood” não é um filme ingenuamente construído sobre a premissa de que a arte vale pela arte. Ainda que hollywoodiano, é de algum modo militante, no sentido de que, em algum momento histórico, perdemos o bom caminho, a boa via, como se lê no início da Divida Comédia. É um filme que alerta para o fim das utopias. Sem sonhos, a vida torna-se seca, sem sentido, insatisfatória, sofrível. E isso não é uma mera aliteração.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 09/03/2020
Reeditado em 09/03/2020
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