Acossado, de Jean-Luc Godard

Acossado, de Jean-Luc Godard

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

O predomínio de uma língua é menos um assunto de linguística do que uma questão política. Essa última, para quem exploramos as diferenças entre conjuntura e estrutura, é uma questão econômica. Simples: a economia dita o predomínio de uma língua. É o que explica a preponderância, na tradição ocidental, do grego, e depois do latim, e depois do francês, e agora do inglês. O inglês (língua de uma ilha, na origem) abalou o orgulho nacional francês. O francês era língua franca de diplomatas e da comunidade internacional erudita.

A França conseguiu alguma recuperação nas décadas de 1950 e 1960 com a “nouvelle vague”, um modo de fazer cinema que resgatou (temporariamente) o orgulho nacional francês. Entre os diretores, Jean-Luc Godard e François Truffaut. Entre os críticos, André Bazin e toda a patota do “Cahiers du Cinema”. Entre os atores, Jean-Paul Belmondo (que nasceu no mesmo dia que eu, 9 de abril), Brigitte Bardot e Jeanne Moreau. Citei os principais.

“Acossado”, de 1960, e dirigido por Godard, é referência necessária para registro desse modo de fazer cinema. Não é um filme complicado, como pode sugerir tudo o que seja francês, a exemplo do existencialismo, do estruturalismo, de Sartre, de Foucault, de Lacan, e a lista não termina. O enredo é simples. Um jovem desajustado (é um ladrãozinho), protagonizado por Jean-Paul Belmondo, assassina um policial e é discretamente perseguido. Não falta o típico detetive francês, com chapéu de feltro e com o inseparável jornal dobrado no paletó. Não sei o que policiais franceses liam nos jornais o tempo todo.

Belmondo contracena com Jean Seberg, a típica musa existencialista. Americana, Seberg fala um delicioso francês. É americana no filme. Pede traduções e explicações a Belmondo. O espectador ainda ganha uma aula de francês. Belmondo retoma o “argot” (gíria) dos anos 60. Em tempo. Seberg morreu misteriosamente em 1979, aos 40 anos. Ativista política, ao que consta era ligada aos Panteras Negras. Belmondo protagoniza Michel, também chamado de Laszlo. Seberg protagoniza Patricia Franchini.

“Acossado” é um filme de um tempo diferente. E naturalmente hoje é visto de um modo totalmente diferente como fora visto em sua época. Há aspectos que chamam a atenção hoje. E talvez somente hoje. Michel acende um cigarro no outro. A guerra fria estava no auge. Eisenhower visita Paris. Fala-se em União Soviética, onde havia “russos”. Em P&B a fotografia é estonteante. Paris, em 1960. As fotos aéreas são memoráveis. Entende-se o resgate do orgulho nacional, sem que a atitude represente qualquer forma de chauvinismo.

O mais tradicional carro francês, o Renault 4CV (confira no google imagens), está em todo lugar. Há também simcas e vários outros carros europeus. Isto é, “Acossado” também vale pelos adereços de museu, e à época em pleno funcionamento: toca-discos, telefone público, máquina de escrever, radinho de pilha, e o tradicional café francês, que ainda persiste, ainda que ameaçado pelo Starbucks.

Creio que, assistido hoje, 60 anos depois, “Acossado” é ainda mais cult. Retira-se hoje de seu conteúdo muito mais do que à época poderia talvez se compreender como cult. Bem entendido, o conceito ainda não era voga. Por ser diferente, ou a frente no tempo, dizia-se de “vanguarda”. “Acossado” é cult (quer dizer, objeto de culto, de admiração) pela simplicidade cativante, pela originalidade do roteiro, pelos significados ocultos (que se multiplicam), pelo forte vínculo que exerce sobre as pessoas e, principalmente, pela fortíssima vinculação das pessoas entre si.

Michel vê o crime como uma banalidade. É ordinário, trivial, medíocre, na pior forma que esse conceito possa exprimir. Patrícia é mais elevada, conhece literatura, cita Dylan Thomas e William Faulkner. Michel é obcecado com o cinema americano. Talvez aqui a influência do roteirista, François Truffaut, que merece um longo registro a parte. Observe que Michel roça os lábios com o polegar o tempo todo. É um tique reconhecido de Humphrey Bogart. Em uma das cenas Michel para em frente a um cinema que exibe um filme com Bogart. E o outro nome de Michel é Laszlo, o rival de Humphrey Bogart em Casablanca. Referência e homenagem maior não pode haver.

“Acossado” é um filme desconcertante. Patrícia afirma que dormir junto é forma absoluta de separação. O casal não está junto quando dorme. E ela explica. Patrícia é independente e exerce o direito de escolher. E inclusive escolhe chamar a polícia. Julgava que seria uma forma de julgar se estava, de fato, apaixonada.

“Acossado” é um filme conceitual. Os transeuntes olham para os atores principais, acompanham a sequência, e atestam que estão em um filme. Não há muito hipocrisia ou fingimento. Estar em Paris, em 1960, já era algo suficientemente histórico e relevante. Há gravuras reproduzindo Paul Klee e Renoir, que Patrícia comenta. Defende-se a imortalidade como condição para a morte, como um dos protagonistas registra em momento ameno desse deleitoso filme.

Se o leitor quer saborear um pouco dessa experiência cultural única escute o “Concerto para clarineta em lá maior”, de Mozart, tocado em algum momento do filme. Feche os olhos. E será transposto para a transcendência do belo e do que realmente importa.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 18/03/2020
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