Alemanha, ano zero, de Roberto Rossellini

Alemanha, ano zero, de Roberto Rossellini

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Berlim. Fim da segunda guerra mundial. Um homem (arrogante) diz a outro homem (ainda mais arrogante), que foram respeitáveis nacional-socialistas, e que, com a derrota, eram então nazistas. “Nacional-socialista” carregava uma antropologia heroica e positiva. “Nazista” tornava-se tabu, emblema de derrotados. A arrogância dos anos de glória (como se lê em William Shirer) era substituída pela vergonha, pela hipocrisia e pela negação do que realmente ocorria. Chegava a hora do acerto de contas.

Os relatos do fim da guerra são pesadíssimos. Os vencidos dissimulavam que um dia foram nazistas. Hitler era o culpado de tudo (pelo menos frente aos tribunais e juízos locais), como se não tivesse milhares de seguidores. Fanáticos. Agora, derrotados, diziam que foram enganados, e que nada viram, e que de nada sabiam. É o fantasma da culpa coletiva, assunto esquadrinhado por filósofos da estatura de Karl Jaspers. Enfrentava-se o processo de desnazificação, mais um trauma, entre tantos traumas da vida alemã. Era o tempo da justiça de transição, da construção de um enfático “basta” e de um ainda mais enfático “nunca mais”. Uma lição do tormento nazista, que não pode ser esquecido.

Esse é o pano de fundo do memorável “Alemanha, ano zero”, de Roberto Rossellini, obra-prima do neorrealismo italiano. Um filme atual, que ativa a memória, e que provoca os neurônios da política (de quem os tem, evidentemente). Filmado em P&B, numa Alemanha efetivamente devastada, com os diálogos todos em alemão, o que marca mais ainda o realismo que envolve essa tormentosa narrativa. Em determinado momento um personagem lembra que estava doente, que a Alemanha estava doente, e que todos estavam doentes. A doença era na verdade uma doença civilizatória. Essa, creio, a mensagem central nesse filme de Rossellini.

Trata-se de um filme sobre a destruição alemã. Porém, é um filme sobre a destruição alemã do ponto de vista moral. Há um trabalho de reconstrução material que não parece ser acompanhado por um trabalho de reconstrução moral. Moças se entregavam por cigarro, a moeda nacional então mais valiosa. Dramático. No centro da história, um menino, que desesperadamente se esforça para ajudar o pai doente, o irmão que se escondia das autoridades e a toda a família, incluindo vizinhos. O menino é o pequeno herói dessa história, que é um relato da desgraça da condição que predica na barbárie e na guerra.

Há cenas e passagens chocantes. A moça que se insurge contra a venda da balança da família, preocupada como iria controlar seu peso (como se não soubesse que todos morriam de fome). Em que mundo estava vivendo? Filas para tudo. Mercado negro como regra. Crianças brincando em monumentos abandonados e em prédios e esgotos destruídos. Crianças que perderam pai e mãe, jogadas à sorte, vivendo na rua. Mas por que será que a sorte de nossas crianças abandonadas e violentadas parece não chocar tanto?

Um professor nazista (que além do que era pedófilo) alicia o menino para que toque um disco com um discurso de Hitler onde fora a chancelaria do Reich. Inocente, o menino atende ao pedido, em troca de alguns poucos marcos. O professor convence ao menino que apenas os fortes resistem. Os fracos sucumbem. É o que basta para o menino planejar (e executar) o assassinato do pai, já idoso, que estava doente, e que conseguia comida apenas no hospital onde conseguiu ficar por alguns dias. O pai se lamentava que a inflação havia tomado sua poupança e que Hitler lhe havia tomado os filhos. Com a morte do velho, os vizinhos disputavam o espólio: algumas roupas velhas.

Bem ao fim, alguém toca órgão em uma igreja abandonada e destruída. O menino encontra o que sobrou de uma pistola e atira imaginariamente para todos os lugares. Vê o caixão do pai levado para o cemitério (estavam todos lotados) vários dias depois do óbito. Chega.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 19/03/2020
Código do texto: T6891258
Classificação de conteúdo: seguro