A bela da tarde, de Luís Bunuel

A bela da tarde, de Luís Bunuel

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Passados mais de cinquenta anos do lançamento de “A bela da tarde”, do espanhol Luís Bunuel, nem o diretor, nem a atriz principal (Catherine Deneuve, no papel de Sevérine), nem a dona do bordel, nem os frequentadores, nem o marido traído, nem o amigo do marido, nem os críticos, e muito menos nós espectadores, sabemos se, de fato, a protagonista prostituía-se todas as tardes, ou se sonhava acordada. Seria verdade que a mulher do médico se prostituía? “A bela da tarde” é um filme que estuda a alma. O filme é de 1967. Os dilemas da alma transcendem no tempo. Complica quando o dilema da alma se instaura no trilema do corpo.

O filme tem muitos enigmas. O cliente chinês tinha com ele uma caixinha, com algo eletrônico dentro. Ele abre a caixa, mostra para as prostitutas, que ficam horrorizadas, e que, dizem: não! Estão horrorizadas. Quando o chinês mostra a caixinha para Sevérine, ela parece interessada. Bunuel conta em seu livro de memórias (Meu último suspiro) que sempre lhe perguntam o que havia dentro da misteriosa caixinha. Diz que não tinha a mínima ideia do que havia lá dentro e que responde: imagine o que você quiser. Esse relato, em forma de anedota, dá o tom e a recepção desse belíssimo e ainda encantador filme. Não adianta falar o óbvio: é um filme surrealista.

Sevérine (Deneuve) é uma linda e solitária esposa de um médico. Frígida, indiferente, parece alheia ao marido. Dormem em camas separadas. O marido dedica-se o tempo todo para o estudo e para o trabalho. Um amigo do casal fala a Sevérine sobre um bordel. Sevérine vive fantasias eróticas. Excita-se com a ideia de ser agredida, violentada, mal tratada. É indicativo dessa fantasia a primeira cena do filme, na qual o próprio marido ordena que dois condutores da carruagem a açoitem e em seguida lhe possuam. A partir daí, é com o espectador.

Prostituía-se pela tarde. Erotismo e muita fantasia. No bordel atendia por “Bela da tarde”. Em “flashbacks” tem-se a impressão de que era abusada na infância. Lembra-se de recusar a hóstia na infância, o que indica que a culpa a perseguia desde o sempre. No dia em que se apresenta no “rendez-vous” está em dúvida se essa é a opção certa. Combina que dividirá o que ganhar com a dona do bordel. As colegas percebem que Sevérine é elegante, veste-se com roupas caras, ela tem classe, é diferente.

Pela tarde, Sevérine se delicia com a nova atividade. Excita-se. Parece que gosta da brutalidade. Transforma-se na estrela do lugar. Quando chega em casa, angustia-se e queima a lingerie usada no dia. No entanto, renovada pela experiência sensual da tarde, parece se interessar pelo marido. Os frequentadores do bordel são todos estranhos e patológicos. Mais parece um hospício. Um deles (um duque) a leva para um castelo onde simula o enterro de uma vestal. Um outro gosta de apanhar. Quanta gente doida.

O limite entre sonho e realidade dilui quando um dos frequentadores do bordel (com dentes de prata, meias furadas, violento) se apaixona por Sevérine, vai até sua casa e resolve estragar o casamento da bela da tarde. É o desate do filme.

Duas hipóteses. Se Sevérine apenas sonhava, pode-se pensar que era aquele dúbia sensualidade o que realmente desejava. Sonhos realizam desejos contidos. Em algum momento Sevérine chega a relatar para o amigo do casal que a compulsão que tinha para aquela forma de sexo era irresistível. O leitor me perdoe a redundância.

Por outro lado, se Sevérine efetivamente vivia aquela vida dupla, prostituindo-se pela tarde e vivendo a boa esposa do médico a outra parte do tempo, pode-se comprovar que vivemos muitas vidas, contidas em uma única vida, que não se esgota em uma experiência singular. Somos múltiplos.

O reconhecimento dessa multiplicidade é o núcleo da herança intelectual daquele célebre médico de Viena, para quem a investigação sobre nossa felicidade não nos ensinou quase nada que já não pertença ao conhecimento comum. Ainda que muitos neguem.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 20/03/2020
Reeditado em 26/03/2020
Código do texto: T6892202
Classificação de conteúdo: seguro