Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore

Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Chorei. Chorei muito. Chorei muito ao ver “Cinema Paradiso” trinta anos depois de minha primeira experiência com essa obra-prima de Giuseppe Tornatore. Não se trata de assistir a um filme. Trata-se de uma experiência estética, emocional, profundamente sentimental, que se renova e que não se esgota. Uma infinidade de referências cinematográficas.

O cinema é uma experiência de vida. Nos afastamos da realidade, e também compreendemos as várias realidades. Foi onde nervosamente pegamos na mão da pessoa amada, a primeira, ou a última. Foi onde fechamos os olhos para beijos inesquecíveis, é onde convivemos com um mundo que nossas existências isoladas jamais alcançariam.

A par do enredo, fortíssimo, “Cinema Paradiso” é a história do cinema ocidental e da indústria cultural. Ao longo da sessão, veem-se filmes mudos, Chaplin, Buster Keaton, o início do cinema falado, Renoir, clássicos de Hollywood, John Wayne, Visconti. Tem-se a metáfora do incêndio, da reforma (de onde o “Novo Cinema Paradiso”), que antecedem o realismo da chegada da televisão, do vídeo, e da decadência.

O cinema era o centro da vida dessa pequena cidade siciliana. O enredo passa-se em Giancaldo, uma vila imaginária, transposição para o cinema da vila de Bagheria, na qual Giuseppe Tornatore passou a infância. “Cinema Paradiso” é em larga medida um filme autobiográfico. As cenas foram fotografadas em vários pontos da Sicília, uma boa parte delas na vila de Pallazzo Adriano. Vivem-se as dificuldades que resultaram da segunda guerra, o que reforça a pobreza do pequeno povoado. Trovatore lembra-nos Rossellini e o cinema neorrealista italiano. Exibe misérias mas o faz sem pieguice, e sem meias-palavras.

“Cinema Paradiso” é também a história de um simpaticíssimo menino, Salvatore, apelidado de Toto, obcecado com o cinema local. Desenvolve uma forte relação com o projetista, Alfredo, a quem tem como pai e guia. O pai do menino morreu na guerra. Despareceu na Rússia. A mãe cuidava do menino e da irmãzinha, com muita dificuldade. O padre era a censura local, ordenando ao projetista que excluísse dos filmes todas as cenas nas quais havia beijos. Alguém reclama que eram vinte anos de cinema sem um único beijo na tela. O padre não suportava pornografia...

A cumplicidade entre Alfredo e Toto é cativante. Toto ajudou Alfredo no exame local de suficiência. Alfredo alfabetizou-se quando já era adulto. Alfredo ajudou Toto quando o menino gastou o dinheiro do leite para poder ir ao cinema, explicando para a mãe que as 50 liras que o menino disse ter perdido foram encontradas entre as carteiras. O ator mirim, Salvatore Cascio, nasceu em Palazzo Adriano, local das filmagens. Alfredo é protagonizado por Philipe Noiré, que faleceu em 2006. Noiré era francês, suas falas foram gravadas em francês, e dubladas para o italiano na montagem da fita. Belíssimas atuações.

Os personagens dessa pequena vila convergem com a vida no cinema. O comunista (que foi expurgado da cidade); o cartão postal ambulante (o louco que gritava que era dono da praça); o casal que namora no cinema, e que se casa, e que leva o bebê para as sessões; o lanterninha moralista que corrigia as indulgências auto exploradoras dos meninos; os mais ricos, que sempre ficavam na parte de cima – um deles cuspia nos mais pobres, que ficavam em baixo, haverá vingança; o napolitano, que ganhou na loteria; o romântico que sabia as falas de cor. Um universo, que apenas o cinema consegue sintetizar, em pouco tempo. As imagens falam. O que os olhos veem dói no coração. A vista de uma cena, de uma foto, pode sepultar uma alma, ou um amor, ou a ilusão de um amor...

Não me refiro ao fim porque muitos que viram esse belíssimo filme provavelmente já esqueceram, e todos que não viram não sabem o que perderam. Apenas registro que considero a cena final, na qual Salvatore aprecia o presente que Alfredo lhe deixou, como a mais lírica e tocante da história do cinema. O retorno de Salvatore à pequena comunidade é um pouco de nossas angústias, enquanto seres deslocados. Voltaremos para nossas origens? Queremos? Ainda somos os mesmos?

Ao fim,meu filho, Bernardo, adolescente, disfarçava a emoção, argumentando que filme que fala de filmes é metalinguagem. E ficou sério. Minha filha, Marina, com os olhos marejados, reconhecia que “Cinema Paradiso” toca profundamente na alma. Pensei que essa reação pudesse ser uma pequena catarse para com os dias de confinamento que alguns temos o privilégio e o dever de enfrentar. Errei. “Cinema Paradiso” é um filme que a qualquer momento nos faz desabar. Justamente porque é um filme sobre o amor e sobre o apego para com a vida. A vida que não queremos perder, e o amor que nos dá a razão para viver.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 22/03/2020
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