O poço, de Galder Gaztelu-Urritia

O poço, de Galder Gaztelu-Urritia

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Trash. Aterrorizante. Pense bem antes de assistir. Tire as crianças da sala. O poço é uma prisão inusitada, em forma vertical. Dividida em vários níveis (andares) - - não se sabe se 150, ou 200, ou 300) - - posiciona os presos em duplas. Estão em celas nas quais há um fosso no meio (que lembra o fosso por onde passam os elevadores). É por esse fosso que em uma imensa bandeja desce a comida que a todos deve alimentar. São refeições primorosíssimas, preparadas com esmero e muita atenção. Alguns pratos são refinados, muitos lembram a tradição da “nouvelle cuisine”, minimalista, concentrada nos sabores e indiferente para com proteínas e carboidratos.

O andar mais alto recebe os pratos em sua forma original: um banquete. Na medida em que a bandeja desce pelo poço os demais presos vão comendo, como animais, com as mãos, em certo momento lançando excrementos. Não se preocupa com quem está no andar de baixo. As bandejas chegam vazias nos últimos andares. Apela-se para o canibalismo. Não há o que comer nos pisos inferiores. Seria possível uma metáfora mais poderosa para a falta de solidariedade que ronda o mundo?

Esse me parece o ponto central dessa assustadora narrativa. Trash. Aterrorizante. Pense bem antes de assistir. Tire as crianças da sala. Avisei. “O poço” é um filme que suscita miríade de leituras, de psicologia social, de direito penal, de antropologia. É um filme que revela a miséria da condição humana. Pessimista por vezes, supostamente otimista no fim. Não sei. A fotografia é desesperadora. Há cenas que provocam a êmese, que os dicionários definem como a expulsão (voluntária ou involuntária) dos conteúdos do estômago. Poderia ter usado uma palavra só: o vómito.

Gareng (Ivan Mascague) pretende aproveitar a prisão para parar de fumar e ler o Dom Quixote de Cervantes. Em algum momento tem que devorar (literalmente) as páginas desse permanente livro. Trimagui (Zorin Eguten) é um idoso que posa de sábio. Entendo que não passa de um velho reacionário que se contenta com os restos de uma classe superior que adula permanentemente. Cumpria pena por ter matado um imigrante, que odiava, ainda que insistindo que fora um homicídio culposo, e não doloso. De que adianta essa divisão se o resultado é a morte? Em dado momento Trimagui alimenta-se de tira do corpo de Gareng, e que também deveria se alimentar do próprio corpo: autocanibalismo. Trimagui, no entanto, o tranquilizava: pouparia a genitália... É um sádico. Um homem primitivo. Andam soltos por aí.

Os presos podiam escolher um objeto para levar à prisão. Gareng levou o livro de Cervantes. Trimagui escolheu levar uma faca imensa. É a batalha entre o livro e a arma, entre a educação e a barbárie. Quem vence? E a que preço? Gareng vê o óbvio. Basta que a comida seja dividida. Todos seriam alimentados. Trimagui o chama de comunista, afinal, por que dividir?

Na lógica de “O poço” havia três tipos de pessoas: as de cima, as de baixo, e as que caem. Não há ilustração mais idônea para a tipologia das classes. A maioria vive das sobras de comida. A minoria dos andares de cima refastela-se. Não se preocupa com quem está mais abaixo. Ainda que os presos sejam permanentemente transferidos de níveis, tem-se a impressão que o nível superior é de alguma casta privilegiada. A tipologia criminológica desse filme dá o que pensar.

As metáforas ampliam-se com a linda moça que busca o filho, transitando por todos os andares. Uma beleza estonteante, diferente. Penso que é o núcleo racional da narrativa. Há uma cena na qual Gareng e a moça se entregam na cama. O modo como a moça desliza seu corpo sobre o dele é cena lírica, tocante, aliciante. Um dos momentos mais belos do cinema contemporâneo.

“O poço” é um filme que não se restringe a supostos iniciados. É um filme que se assiste na Netflix. “O poço” respeita a inteligência do espectador, ainda que abuse nas provocações visuais. É um grito desesperado em favor da solidariedade humana. Não há arte engajada ou filme mais apropriado para os estonteantes dias nos quais vivemos. No contexto da metáfora do filme, quem sabe seja necessário que cheguemos ao fundo do poço. Talvez nesse dia possamos nos lembrar que a civilização se faz com a deferência para com o próximo, que é uma projeção externa e tangível de nós mesmos. Por isso devemos tratar a todos como gostaríamos que fossemos tratados. Sermão da montanha com imperativo categórico kantiano e bom senso e humanismo. Óbvio, que aliás é a palavra mais repetida nesse marcante filme.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 28/03/2020
Reeditado em 28/03/2020
Código do texto: T6899357
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