Um contratempo, de Oriol Paulo

Um contratempo, de Oriol Paulo

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Detalhes. Preste atenção nos detalhes. Uma antiga lição nos dá conta de que o bom romance policial é justamente aquele no qual, ao fim, ao sabermos quem é o criminoso, exclamamos: como é que não percebi? Irritante. Revela nossa limitação intelectual, ou nossa falta de atenção.

Deve-se prestar atenção nos detalhes. É o que recomenda a leitura dos mestres no assunto, Edgard Allan Poe (o pai fundador do gênero), Arthur Conan Doyle e Agatha Christie (cuja vida pessoal é tocante, leiam sua autobiografia). Nesse assunto, vários gêneros se condensam. É crime, é drama, é suspense, é comédia (quem não ri de Watson, quando Holmes lhe diz que praticamente tudo é elementar) e pode ser até terror. No cinema, o maior é Alfred Hitchcock. Esse genial inglês, entre outras ideias, achava que um bom filme deveria adaptar-se ao tempo da bexiga humana: não deveria ser tão longo.

Todas essas qualidades (entre elas a brevidade) encontram-se em “Um contratempo”, do espanhol Oriol Paulo. Detalhes. Preste atenção nos detalhes. É o drama de Adrian Dória (Mario Casas), yuppie ascensional, empresário do ano, bem sucedido, a quem sobra tudo. Preste atenção nos detalhes. Há algo que lhe falta? Bem casado, com uma linda filhinha, relaciona-se com uma linda fotógrafa, a quem tudo sobra. Será que lhe falta algo? Preste atenção nos detalhes.

Uma sucessão de fatos não pensados, que se iniciam com um acidente em uma estrada rural, leva a uma profusão de desdobramentos. É de tirar o fôlego. Com os detalhes, diz a advogada (sic) pode-se provar o que quiser. Entre versão e invenção os limites são tênues. Tem-se um filme que é um “case” para o estudo da teoria da argumentação. O modo como a advogada constrói a narrativa que vai apresentar como defesa de Adrian é um curso de argumentação jurídica. Prestem atenção. Cuidado com os detalhes.

Há no núcleo do filme um pai que se dispõe a tudo para encontrar o filho desaparecido. Tomás Garrido (protagonizado pelo excelente José Coronado) vence todos os limites para encontrar uma verdade que lhe é fundamento e razão da existência. Preste atenção nos detalhes. É a força indomada de um pai e de uma mãe. Conheceram-se no teatro. Vivem com simplicidade, no interior. Que lugar lindo! Nos detalhes. Preste atenção.

“Um contratempo” é um filme que mantém o espectador cativo, como uma estátua. Visto na televisão (é blockbuster da Netflix) não se pode deixar o filme rolar para buscar a pipoca. Há necessidade, às vezes, de um ou outro “backward”, como dizíamos no tempo do VHS. A fotografia é extasiante. Barcelona é fotografada com todo seu esplendor. Do escritório de Adrian Dória veem-se as torres da catedral inacabada de Gaudi. A região montanhosa do hotel, com a neve e a estação de ski, é também algo a apreciar.

Um thriller cheio de surpresas e de reviravoltas na narrativa. Creio que Hitchcock teria se impressionado e talvez reconhecido que discípulos enfrentam os mestres. Detalhes. Preste atenção nos detalhes. Em tempo. Os puristas da língua condenam o uso de “detalhes” por ser um galicismo e por isso estranho à língua portuguesas. Preferem “pormenor”. Tal crítica, lamento, é apenas um detalhe. Nessa resenha, em alguma parte, há um pequeno detalhe que pode ser a chave interpretativa desse filme desafiador. Qual?

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 29/03/2020
Reeditado em 29/03/2020
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