Paisà, de Roberto Rossellini

Paisà, de Roberto Rossellini

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

A ilusão italiana com o fascismo é confirmada nas terríveis cenas da morte de Mussolini. Fugindo da Itália o Duce foi encontrado, preso e fuzilado. O que sobrou de seu corpo foi levado para Milão, onde foi exposto em praça pública. A multidão continuou o linchamento, enfurecida, com gritos e palavrões. Era tarde. Na Alemanha, Hitler suicidou-se dois dias depois. É esse o fim dessas figuras sinistras, que se repetem ao longo dos anos, como farsa, e também como tragédia, de acordo com a lição daquele filósofo barbudo de Trier, ainda que formulada para outro contexto. A memória histórica é curta e preguiçosa.

O cinema é também uma maneira de oxigenar lembranças. Filmes são registros de época. Carregam uma possibilidade de interpretação futura, sobre a qual não há controle, aporia interpretativa que eu denomino de reserva de sentido. Essa possibilidade de interpretação é comum na literatura, na música e nas artes plásticas. Algumas narrativas persistem com um aviso. Bom ouvi-las.

Roberto Rossellini (1906-1977) filmou a tragédia do fim da guerra em três clássicos do neorrealismo italiano. Alcançou um universo sinistro, no qual era recorrente a exploração de crianças, em sua maior parte abandonadas e desprovidas de esperança. “Paisà” é um filme que se propõe a indicar o trágico, sem tentar compreendê-lo. A tragédia, que de algum modo significa nossa impotência para com o destino, escapa a qualquer esforço racional de compreensão. Esse filme de Rossellini é uma testemunha permanente, que deveria ser também constante no imutável tribunal da consciência humana. Essa consciência existe, e o fim de Mussolini é prova de arrependimento, um acerto de contas que a consciência nos cobra.

“Paisà” é dividido em seis episódios, que são precedidos por um breve noticiário de guerra, que anuncia a chegada dos americanos na Itália. Libertadores para alguns, novos algozes para outros, Rossellini trata os americanos com absoluta isenção. Não há o pieguismo irritante dos filmes do tempo da guerra fria. Rossellini os retrata como certamente eram. Deslocados de um contexto que vendiam como uma utopia, não se viam como salvadores. Eram todos frutos de uma mesma máquina diabólica, que predicava na alucinação de que há uma razão salvadora.

O primeiro episódio se passa na Sicília. Americanos e italianos conversam em uma língua franca na qual ninguém se entende. Ainda há alemães por toda parte. As cenas se deslocam para Nápoles, e há sequências de rua que revelam uma miséria estonteante. Seguem para o Monte Cassino, onde brasileiros lutaram. Há um episódio em Florença. Estátuas são fotografadas em caixas de madeira. Não se sabe, exatamente, se seriam roubadas pelos alemães ou se havia um esforço de proteção daquele tesouro artístico. Um soldado inglês vê a cidade com seus binóculos. Delineia igrejas e paragens, insensível ao sofrimento humano. Um italiano, do alto do terraço de onde morava ouvia tiros e descrevia qual o calibre da arma que fora utilizada. Dizia ter combatido na única guerra de verdade, a primeira, em 1918. Fantasia. A primeira guerra passou-se em sua maior parte em movimentos estáticos de trincheira.

Há um outro episódio forte em possibilidades de interpretação, filmado em um mosteiro. Religiosos americanos e italianos discutem teologia. Os americanos fumam e distribuem chocolate. Descobre-se que um dos americanos é judeu e outro é protestante. Como acomodar fés distintas em idêntica origem comum? Os italianos conhecem o leite em pó e reconhecem a superioridade tecnológica (e não teológica) dos visitantes libertadores invasores. Nos episódios finais há prostituição, resistência contra os alemães, ódio a fascistas.

Não se sabe bem se “Paisà” é narrativa ficcional ou um documentário. Essa dúvida deve ter abalado produtores e primeiros espectadores do filme. A filmagem da vida real, com as misérias e injustiças, talvez também tenha escandalizado. É que Rossellini, na busca da realidade, afastou-se da estética fascista, então focada no grandioso, no monumental, no esforço de vincular o fascismo à herança romana. Era um patriotismo irresponsável, em forma de ilusão maliciosa que contamina mentalidades doentes e preconceituosas. A trilogia de Rossellini pode ser acompanhada pela sempre instigante leitura de Natália Ginzburg (1916-1991), escritora italiana cuja família (especialmente pais e irmãos) foi perseguida pelos militantes do fascismo.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 04/04/2020
Reeditado em 04/04/2020
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