O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola

O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Em 1973 Marlon Brando foi anunciado vencedor do Oscar como melhor ator pelo inesquecível trabalho como Don Vito Corleone em “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola. Ele não compareceu à cerimônia. Foi representado por Sacheen Littlefeather, atriz, líder de aborígenes que atuavam no cinema. Sacheen foi convidada a subir ao pódio por Roger Moore (o eterno 007, depois de Sean Connery) e por Liv Ulmann (atriz norueguesa que nasceu em Tóquio, e que atuou em “Gritos e Sussurros” de Ingmar Bergman).

Sacheen recusou a premiação, a pedido de Marlon Brando, para espanto de Roger Moore. Levava uma declaração do ator premiado, em defesa de um tratamento mais humano por parte de Hollywood em relação aos indígenas nos Estados Unidos. Não leu a declaração, por causa do tempo limitado que tinha para se pronunciar. O jornal The New York Times publicou o texto na íntegra. No entanto, embora não lendo o texto de Brando, a atriz verbalizou um protesto. O fato, creio, revela o caráter e a força de Brando, ainda que haja críticos, por causa de alguns episódios de sua vida, que não convém aprofundar aqui. Há uma suposta e imaginária acusação infamante e deplorável de Maria Schneider, com quem Brando contracenou em “O Último Tango em Paris”.

Eu admiro Marlon Brando. Presente em seu tempo, militante, colocava seu prestígio em favor das causas nas quais acreditava. Essa lembrança justifica que retomemos “O Poderoso Chefão”, um dos trabalhos mais emblemáticos da história do cinema. Mas, de que modo?

Passados quase 50 anos de seu lançamento, parece-me que nada resta a falar sobre “O Poderoso Chefão”. Roger Ebert, o maior dos críticos, já sintetizou e problematizou esse filme, percebendo aspectos que sem sua intervenção talvez até hoje não perceberíamos. Exemplifico com a observação de Ebert sobre a esposa do Don Corleone, que sequer tem fala no filme. É uma coadjuvante permanente, o que revela a posição da mulher no universo siciliano. No Brasil “O Poderoso Chefão” já foi esmiuçado pelo nosso maior especialista no assunto, Pablo Villaça, que leciona cursos no tema, e que dissecou o filme (a trilogia) quadro a quadro. Sobre o que mais falar?

Em dois pontos eu poderia ensaiar uma colaboração. Na área do direito, na qual tenho algum interesse e alguma especialidade, por força da minha atividade profissional, e no campo da superação pessoal e da tomada de decisões em tempos difíceis, no qual preciso aprender alguma coisa, por conta de um permanente estado hamletiano, cheio de dúvidas e de apreensões.

Comecemos. “O Poderoso Chefão” é uma lição sobre o pluralismo jurídico, concepção que refuta a ideia predominante de que somente exista direito no Estado. Logo na primeira cena, quando há um pedido de punição de homens que haviam violentado a filha do suplicante, verifica-se a crença em um sistema de penas exterior à organização estatal, e muito mais eficiente. Corleone poderia resolver o problema. Não admitia ser pago pelo serviço, o que revela a lógica de favores na qual sustentava sua ascendência.

No início do filme a narrativa centra-se no casamento da filha de Corleone, e o diretor alterna aspectos da festa com uma romaria de pessoas que o poderoso chefão recebia em seu escritório. A cantilena de pedidos compõe um conjunto de demandas que centralizam Corleone como agente de distribuição de penas e recompensas. O cantor e ator Johnny Fontaine (para alguns uma paródia de Frank Sinatra) pediu intervenção do “Padrinho” para que obtivesse um papel em um filme que algum mandachuva de Hollywood lhe negava. A fórmula que Corleone usou para resolver o problema convence e entusiasma, ainda que não nos preocupemos com as razões pelas quais o patrão de Hollywood negava atender à súplica do cantor. Caímos na armadilha de Coppola. Temos dificuldade em criminalizar ou hostilizar Corleone.

Corleone é um poder paralelo, informal, eficiente, rápido, seguro, cujo custo era a construção de uma aliança que poderia justificar um pedido futuro. E os pedidos de Corleone, na construção amena do papel que Coppola lhe dá, poderiam ser (mais nem sempre) de mera cortesia ou de atenção, a exemplo do pedido que fez ao agente funerário para que reconhecesse na morgue a seu filho Sonny (James Caan), que fora assassinado por rivais. O sistema de taxas e de custas judiciais girava em torno de favores e pedidos. “O Poderoso Chefão” nos revela que o poder não é monopólio do Estado como certa teoria política tradicional nos pretende convencer.

Quanto à tomada de decisões e o processo de superação pessoal tem-se na trajetória de Michael (Al Pacino) um exemplo imorredouro. Michael foi educado para viver distante dos negócios da “família”, frequentou a universidade, juntou fileiras no Exército e voltou da segunda guerra mundial como herói. Além de ser inegavelmente o filho predileto de Corleone (que justamente por isso não o queria nos negócios), Michael contava com irmãos que não se enquadravam no esquema sucessório da família. Sunny era muito impulsivo. Freddo (John Casale, falecido em 1978) era uma eterna criança. Tom Hagen (Robert Duvall), o irmão de criação, oscilava entre os papeis de conselheiro e de advogado.

Ao longo de “O Poderoso Chefão” Michael vai se acomodando ao papel central que teria na família. Quando acaricia o pai no hospital avisando que a partir de então estaria a seu lado assume a posição natural de sucessor. A diabólica destruição de todos os inimigos, inclusive o cunhado, no mesmo dia, enquanto o sobrinho era batizado é a comprovação de que era um homem de ação e de que aprendera o tirocínio com o pai que substituía. A confirmação de que assumia um novo papel é reforçada na cena final. Michael mente à mulher, Kay Adams Corleone (Diane Keaton). Negou ter eliminado os rivais, no momento em que recebe o cumprimento dos auxiliares. No plano seguinte, a porta é fechada e a esposa é definitivamente excluída da vida negocial do marido. Não há mais volta.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 05/04/2020
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